terça-feira, 14 de julho de 2009

Sentimento do mundo

Rubens Barbosa
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Nos últimos 50 anos, os Estados Unidos foram vistos como a "nação líder do mundo livre", por muitos que aceitavam essa liderança, ou como "imperialista" - impondo a sua vontade, escorada no poderio econômico, financeiro ou militar -, segundo os que contestavam a hegemonia de Washington.

O arrogante unilateralismo norte-americano, respaldado pela mais poderosa máquina de guerra jamais construída e pelas vantagens da globalização financeira, econômica e comercial, fez os Estados Unidos perderem a credibilidade e o respeito no concerto das nações, ao longo dos últimos dez anos.

Isolados, os Estados Unidos passaram a concentrar críticas quase universais e tiveram de absorver os custos de uma guerra impopular no Iraque, além do desgaste, sobretudo, em razão das posturas ideológicas de extrema direita adotadas por um dos piores governos da história política norte-americana. Ao mesmo tempo, a situação econômica interna continuou a se deteriorar e os múltiplos déficits na economia, a aumentar. A crise que hoje tanto afeta os mercados no mundo inteiro surgiu nos Estados Unidos, que, abalados econômico-financeira e politicamente, lutam para controlar a recessão e diminuir o desemprego e as perdas da classe média.

O esforço para recuperar a economia pôs em segundo plano as preocupações do país com sua política externa, tornando difícil que os Estados Unidos possam exercer, nos dias de hoje, uma liderança efetiva para a solução de alguns dos principais conflitos globais. Os grandes problemas ou se agravam, como no Paquistão, no Irã e no conflito Israel-Palestina, ou se paralisam, como nas reformas das instituições político-financeiras, herança do pós-guerra, como a das Nações Unidas, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial.

Apesar de tudo, os Estados Unidos continuaram no centro dos acontecimentos globais.

É curioso notar o teste por que passa a teoria, comum nos meios políticos e acadêmicos norte-americanos, segundo a qual o mundo, para se manter estável e avançar economicamente, necessitaria sempre da liderança do país mais importante e poderoso da época, como foi a Inglaterra e, agora, os Estados Unidos. Contestada pela recusa de muitos em aceitar a hegemonia de Washington, a comunidade internacional enfrenta o desafio de demonstrar que a teoria é equivocada e que grandes decisões podem e devem ser tomadas como resultado de um esforço coletivo, e não da vontade da mais poderosa das nações.

A ironia em tudo o que estamos vendo acontecer é que nunca, nos últimos 50 anos, a potência dominante se viu tão vulnerável e enfraquecida, enquanto a maioria dos países tanto dela depende para o fortalecimento da economia e para a busca de soluções negociadas para os principais problemas políticos, econômicos e financeiros globais.

Estamos num período de transição e de paralisia no cenário internacional - um mundo sem liderança -, em que países desenvolvidos e em desenvolvimento ficam à espera da recuperação da economia norte-americana para evitar uma recessão mais forte e da restauração da credibilidade de sua política externa. Temo que esse impasse ainda perdure pelos próximos dois ou três anos.

Nenhum país está equipado para assumir o papel de liderança desempenhado até aqui pelos Estados Unidos. Nem a China, a União Europeia ou os países emergentes.

Apesar de tudo e de todas as restrições políticas aos Estados Unidos, muitos governos estão ajudando o país a buscar soluções para a crise de sua economia. Os recursos - estimados em US$ 2 trilhões - necessários para financiar o déficit orçamentário americano no corrente ano estão sendo fornecidos, entre outros, por países como a China e o Brasil, não exatamente seguidores incondicionais de Washington.

Pode parecer uma afirmação difícil de aceitar por muitos, mas o fato é que, em certo sentido, jamais tivemos um mundo mais unipolar do que agora.

O mundo esperou ansioso pelos primeiros discursos de Barack Obama para entender os rumos da política externa dos Estados Unidos no tocante ao Oriente Médio, às relações com a Europa, com a América Latina, com a África, com a China e com a Coreia do Norte. Como será a atitude em relação aos extremismos (a palavra terrorismo não foi utilizada no pronunciamento do Cairo sobre a relação com o Islã) e à não-proliferação de armas nucleares?

A volta do crescimento econômico, a restauração do crédito internacional, a revitalização do comércio global, a questão do nacionalismo econômico e o protecionismo comercial na área econômica, a reestruturação do processo decisório global, político e econômico, financeiro e comercial, a forma de evitar novos conflitos externos e o equacionamento dos atuais, tudo depende da ação dos Estados Unidos. Seja ela positiva ou negativa.

Os países terão de encarar o papel dos Estados Unidos no mundo a partir de como eles emergirão da crise que está afetando todos e da reação de Washington às novas realidades políticas e econômicas. Como "o resto do mundo" vai reagir quando os Estados Unidos ressurgirem da crise relativamente ainda mais fortes?

Sabendo como os Estados Unidos colocam o interesse nacional acima de tudo, no momento em que a situação econômica se normalizar, a probabilidade é de que o poderio de Washington volte a ser exercido, com estilo e tom diferentes. Os sinais, até aqui, são positivos, como indicam as reações de Washington em relação ao Iraque, ao Irã e, agora, a Honduras. As propostas do USTR para a retomada das negociações de Doha e alguns aspectos da nova política sobre mudança de clima são mais negativos.

Tendo só duas mãos e o sentimento do mundo, esperemos que, diferente de Drummond, ao amanhecer de uma nova era pós-crise, "esse amanhecer não seja mais noite que a noite".

Rubens Barbosa, consultor de negócios, é presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp

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