quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Luiz Roberto Nascimento e Silva :: O verão do patriarca

DEU NO JORNAL DO BRASIL

RIO - No universo político da América Latina, ficção e realidade misturam-se de tal forma que não se sabe quando começa uma e quando termina outra. Normalmente, a realidade ultrapassa a ficção com tal intensidade que se um ficcionista escrevesse antecipadamente tais fatos, sua trama seria considerada inverossímil.

As atitudes recentes do Presidente Hugo Chávez só encontram maior compreensão no universo da criação, no movimento literário do continente denominado realismo mágico, cuja maior expressão viva é o escritor Garcia Márquez.

Chávez pediu à população venezuelana que tomasse banhos de no máximo três minutos. Solicitou também que se fizesse racionamento de energia elétrica. Recentemente, informou que se juntará a uma equipe de cientistas cubanos em “vôos para bombardear as nuvens”. Não há nenhuma comprovação científica que tal método possua eficácia para gerar chuvas.

Tendência

A disseminação desse tipo paradigmático de líder político na América Latina merece nossa reflexão. A primeira constatação que pode ser feita é que não existem partidos políticos na América Latina. Apenas a Igreja e o Exército exerceram a função de partidos políticos no continente ao longo do tempo. Por isso, as Forças Armadas sempre tiveram participação direta ou indireta na maior parte dos movimentos. A ruptura da ordem política e constitucional é regra e não exceção. Não causa nenhuma estranheza que o Coronel Aureliano Buendia de Cem anos de solidão tenha promovido trinta e duas revoluções armadas e perdido todas.

Devemos a San Tiago Dantas uma análise única da trajetória singular do Exército no processo político brasileiro que nos levou a uma renovação da sociedade brasileira na virada do século. Segundo ele, a partir da Guerra do Paraguai o Exército ganha uma estabilidade e coesão interna, que dele fariam um ator permanente das grandes decisões nacionais. Opera-se uma identificação do Exército com a classe média. A nova classe média formada de industriais e pequenos negociantes ligados ao Exército nacional une-se para desmontarem a Monarquia e implantarem a República.

Com a ausência de continuidade no processo político democrático é natural que líderes carismáticos populistas tenham sempre predominado sobre lideranças mais orgânicas. Isso ocorreu em toda América Latina com Getúlio Vargas no Brasil, com Juan Perón na Argentina e Lázaro Cárdenas no México. O partido político é em geral apenas um estágio inicial, necessário para a trajetória posterior carismática e pessoal do líder.

Assim, quando somos informados que o governo do Presidente Chávez destruiu pontes na fronteira entre a Venezuela e a Colômbia não devemos estranhar. Não por acaso, o presidente é militar de carreira que ocupava a patente de tenente-coronel quando assumiu o poder. Em O outono patriarca o ditador feudal e agropecuário genialmente descrito por Garcia Márquez, está no final de sua vida distante da realidade de seu povo, mal-informado, mas age sempre para preservar seu poder pessoal.

Na sua solidão imemorial o ditador pode mudar o clima à vontade. A natureza obedece à fúria dos seus desejos. Ele ouve harpas ao vento, controla a subida das marés. Como diz Garcia Márquez: “um homem cujo poder havia sido tão grande que certa vez perguntou que horas são e lhe haviam respondido quantas o senhor ordenar meu general!” Estamos confrontados não com o outono, mas sim com o verão do Patriarca. A ficção antecipa a realidade modificando metaforicamente as estações.

* Nascimento Silva é ex-ministro da Cultura do governo Itamar Franco

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