DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
O processo que exclui das eleições os chamados "fichas sujas" foi deflagrado por iniciativa exterior ao Parlamento e aos partidos; acolhido por alguns congressistas, tomou forma de projeto de lei
Não é que os Parlamentos em geral possuam limitada disposição para autorreforma. Na verdade, costumam introduzir alterações regimentais internas, com impacto sobre a distribuição de poder entre as suas partes. De acordo com a direção da mudança adotada, líderes podem ser fortalecidos, em detrimento das bancadas, ou vice-versa; procedimentos de autodepuração podem ser aperfeiçoados, ou transformados em mecanismos de autoproteção. Enfim, são muitas as possibilidades, e parlamentares - aqui e alhures - além de legislar, alteram as condições sob as quais legislam.
Menos frequente é a autorreforma voltada para restringir as "liberdades" dos parlamentares. Com o termo aspeado quero designar processos de mudança que incidem sobre parlamentares e seus mandatos. Não é que não haja, no interior do Congresso brasileiro, vozes favoráveis a reformas e à introdução de algum controle público sobre o que fazem os parlamentares, sobre como obtêm mandatos, os compreendem e os exercem. O fato é que, por minoritárias, dificilmente reúnem condições políticas para deflagrar processos de mudança na matéria.
O tema é sensível e explosivo. É de recordar, por exemplo, a "doutrina" da propriedade pessoal do mandato, diante de propostas de limitação, advindas do Judiciário, da troca de partidos. Pela "doutrina", o mandato cola-se à persona de seu detentor, por toda a duração de sua investidura, independentemente da mobilidade de seus vínculos partidários.
De um modo geral, tem sido o Judiciário o responsável por introduzir reformas que operam como regulações externas à atividade dos parlamentares. O próprio Tribunal Superior Eleitoral, há algo como um ano, considerou a matéria da vida pregressa de candidatos. O tema incide sobre o modo pelo qual a pretensão a ter uma biografia política insere-se na biografia, digamos, geral do sujeito em questão. Deve a vida pregressa ser considerada para avaliar se alguém pode desempenhar funções eletivas?
Voto vencido na ocasião, o ministro Ayres de Brito sustentou que não fazia sentido não aplicar aos que postulam ocupar cargo eletivo as mesmas restrições que se apresentam a pretendentes a outras funções públicas. Perguntava: haverá função pública mais relevante do que a do exercício de um mandato eletivo?
Entendeu o plenário do TSE, na altura, que decidir em tal direção implicava usurpação legislativa e fazer uma nova lei a respeito de inelegibilidades, e não a interpretar e aplicar o quadro jurídico existente, tal como gostaria o bom Montesquieu. Em tempos de judicialização da política, esse foi um notável momento, ainda que seletivo, de autocontenção.
Vida que segue, a alternativa à questão passou a depender do que fariam os parlamentares, detentores não exclusivos da função de legislar. De modo ainda mais remoto cabe registrar a defesa da rejeição, in limine, de qualquer intervenção no "mercado político", com a consequente atribuição ao "eleitor" do papel de manejar a cimitarra reparadora.
O capítulo mais recente da história, contudo, foi ordenado por enredo distinto: nem decisão autônoma de autorreforma, por parte do Parlamento, nem a espera fideísta pela manifestação da sabedoria do "eleitor". O processo, em andamento distinto, foi deflagrado por uma iniciativa exterior ao Parlamento e aos partidos - por meio de proposta popular de legislação que exclui das eleições os chamados "fichas sujas". A iniciativa acolhida por alguns parlamentares tomou a forma de projeto de lei.
A adesão dos demais parlamentares pode sempre ser debitada na conta do cinismo e do oportunismo. Temo não ser esta a melhor leitura a fazer do episódio. Independentemente da incidência temporal de seus efeitos - se para já, ou para daqui a dois anos -, a iniciativa que associou uma ação autônoma de um conjunto de cidadãos e entidades a parlamentares é uma boa notícia para os hábitos representativos locais. Se lido em chave apropriada, duas ordens de reflexão distintas podem ser desenvolvidas.
Em primeiro lugar, a iniciativa é um experimento que indica algum aprendizado, por parte de cidadãos e parlamentares, a respeito do que pode significar o vínculo da representação. A percepção madura da liderança do movimento a respeito das alterações feitas pela Câmara ao projeto original foi significativa. Embora algumas alterações produzam efeitos atenuantes, compreendeu-se a necessidade da mudança, por razões táticas e pelo entendimento de que é legítimo que o Legislativo exerça um papel de filtragem.
Por fim, trata-se de compreender que a qualidade da representação está associada à qualidade da demanda social por representação. Quer isto dizer que é necessário que os corpos legislativos sejam interpelados "de fora". Sua qualificação não decorre de processos internos e autárquicos, imaginados por engenheiros legislativos, mas da tensão entre um exterior - o demos, e sua capacidade de exercer pressão eficaz - e um interior, do qual deve se exigir capacidade de escuta e criatividade institucional. No caso em questão, pressão e escuta, igualmente adequados, acabaram por dar sentido à ideia de representação. É torcer para que a moda pegue.
Renato Lessa é professor titular de Filosofia Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)
O processo que exclui das eleições os chamados "fichas sujas" foi deflagrado por iniciativa exterior ao Parlamento e aos partidos; acolhido por alguns congressistas, tomou forma de projeto de lei
Não é que os Parlamentos em geral possuam limitada disposição para autorreforma. Na verdade, costumam introduzir alterações regimentais internas, com impacto sobre a distribuição de poder entre as suas partes. De acordo com a direção da mudança adotada, líderes podem ser fortalecidos, em detrimento das bancadas, ou vice-versa; procedimentos de autodepuração podem ser aperfeiçoados, ou transformados em mecanismos de autoproteção. Enfim, são muitas as possibilidades, e parlamentares - aqui e alhures - além de legislar, alteram as condições sob as quais legislam.
Menos frequente é a autorreforma voltada para restringir as "liberdades" dos parlamentares. Com o termo aspeado quero designar processos de mudança que incidem sobre parlamentares e seus mandatos. Não é que não haja, no interior do Congresso brasileiro, vozes favoráveis a reformas e à introdução de algum controle público sobre o que fazem os parlamentares, sobre como obtêm mandatos, os compreendem e os exercem. O fato é que, por minoritárias, dificilmente reúnem condições políticas para deflagrar processos de mudança na matéria.
O tema é sensível e explosivo. É de recordar, por exemplo, a "doutrina" da propriedade pessoal do mandato, diante de propostas de limitação, advindas do Judiciário, da troca de partidos. Pela "doutrina", o mandato cola-se à persona de seu detentor, por toda a duração de sua investidura, independentemente da mobilidade de seus vínculos partidários.
De um modo geral, tem sido o Judiciário o responsável por introduzir reformas que operam como regulações externas à atividade dos parlamentares. O próprio Tribunal Superior Eleitoral, há algo como um ano, considerou a matéria da vida pregressa de candidatos. O tema incide sobre o modo pelo qual a pretensão a ter uma biografia política insere-se na biografia, digamos, geral do sujeito em questão. Deve a vida pregressa ser considerada para avaliar se alguém pode desempenhar funções eletivas?
Voto vencido na ocasião, o ministro Ayres de Brito sustentou que não fazia sentido não aplicar aos que postulam ocupar cargo eletivo as mesmas restrições que se apresentam a pretendentes a outras funções públicas. Perguntava: haverá função pública mais relevante do que a do exercício de um mandato eletivo?
Entendeu o plenário do TSE, na altura, que decidir em tal direção implicava usurpação legislativa e fazer uma nova lei a respeito de inelegibilidades, e não a interpretar e aplicar o quadro jurídico existente, tal como gostaria o bom Montesquieu. Em tempos de judicialização da política, esse foi um notável momento, ainda que seletivo, de autocontenção.
Vida que segue, a alternativa à questão passou a depender do que fariam os parlamentares, detentores não exclusivos da função de legislar. De modo ainda mais remoto cabe registrar a defesa da rejeição, in limine, de qualquer intervenção no "mercado político", com a consequente atribuição ao "eleitor" do papel de manejar a cimitarra reparadora.
O capítulo mais recente da história, contudo, foi ordenado por enredo distinto: nem decisão autônoma de autorreforma, por parte do Parlamento, nem a espera fideísta pela manifestação da sabedoria do "eleitor". O processo, em andamento distinto, foi deflagrado por uma iniciativa exterior ao Parlamento e aos partidos - por meio de proposta popular de legislação que exclui das eleições os chamados "fichas sujas". A iniciativa acolhida por alguns parlamentares tomou a forma de projeto de lei.
A adesão dos demais parlamentares pode sempre ser debitada na conta do cinismo e do oportunismo. Temo não ser esta a melhor leitura a fazer do episódio. Independentemente da incidência temporal de seus efeitos - se para já, ou para daqui a dois anos -, a iniciativa que associou uma ação autônoma de um conjunto de cidadãos e entidades a parlamentares é uma boa notícia para os hábitos representativos locais. Se lido em chave apropriada, duas ordens de reflexão distintas podem ser desenvolvidas.
Em primeiro lugar, a iniciativa é um experimento que indica algum aprendizado, por parte de cidadãos e parlamentares, a respeito do que pode significar o vínculo da representação. A percepção madura da liderança do movimento a respeito das alterações feitas pela Câmara ao projeto original foi significativa. Embora algumas alterações produzam efeitos atenuantes, compreendeu-se a necessidade da mudança, por razões táticas e pelo entendimento de que é legítimo que o Legislativo exerça um papel de filtragem.
Por fim, trata-se de compreender que a qualidade da representação está associada à qualidade da demanda social por representação. Quer isto dizer que é necessário que os corpos legislativos sejam interpelados "de fora". Sua qualificação não decorre de processos internos e autárquicos, imaginados por engenheiros legislativos, mas da tensão entre um exterior - o demos, e sua capacidade de exercer pressão eficaz - e um interior, do qual deve se exigir capacidade de escuta e criatividade institucional. No caso em questão, pressão e escuta, igualmente adequados, acabaram por dar sentido à ideia de representação. É torcer para que a moda pegue.
Renato Lessa é professor titular de Filosofia Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)
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