Li com atenção o programa do Rede Sustentabilidade. Um partido que nasce com ênfase ética deve ter o manifesto levado a sério. Uma coisa é seguir as ações de Marina Silva e dos líderes do Rede; outra é examinar seu programa. Com toda a simpatia que sinto pelo Rede - só o critiquei por querer mais dele, não menos -, isso me preocupou. Não tenho certeza do que desejam. Provavelmente querem eleger Marina presidente da República. Mas me parece que não priorizam uma bancada parlamentar. Nem estou seguro de que pretendam, tão cedo, governar. Então, o que desejam?
O Rede tem uma linguagem elevada. Diz que quer mudar o mundo. Mas, quando entra no concreto, começa pela economia e segue pela política institucional. É o que ele mais elabora. Mas por que principia pelos meios e não pelos fins? Salvo para alguns economistas e políticos, economia e política são meios. O fim deve ser a mudança do modelo de sociedade, que não é um tema essencialmente econômico. O Rede deveria dar peso concreto, em seus dez pontos, ao que elogia no mundo da vida. Este mundo da vida, hoje, é o de maior liberdade pessoal na história. Podemos mudar de quase tudo, atualmente - de emprego, profissão, cidade ou país, estado civil, religião; alguns, até de sexo. Essa liberdade é preciosa. Cada vez menos gente tem de fazer ou ser o que não quer. Mas ela debilita os laços sociais - o que exige que sejam recriados: um poema de Maiakovski, que Maria Bethânia gravou, falava em reinventar a família. Estes assuntos parecem mais da vida privada do que da política, mas é Marina quem cita, e bem, Freud e Lacan. Só ela, dos candidatos, faz isso.
Primeiro grande ponto: as propostas de reforma política são falhas. Apenas somam boas intenções. Quer candidaturas independentes, mas não diz que para tanto há que extinguir o voto proporcional, que garante a presença de todas as ideias na Câmara. Mas é justamente o proporcional que dá lugar no Congresso aos verdes e o dará ao Rede. Ou será que este gostaria de não ter nenhum deputado? Será que aposta só na Presidência? Além disso, a proposta de abolir a reeleição para o Executivo, que teria mandatos mais longos, faria um presidente eleito num ano conviver com uma Câmara eleita em outro - o que é confusão à vista... A vantagem da reeleição, dizia Thomas Jefferson há dois séculos, é dar um mandato de oito anos com recall no meio. Cinco ou seis anos são demais para um mau presidente, pouco para um bom. E usa-se a máquina com ou sem reeleição.
Programa ignora ciência e cultura feitas no país
Segundo ponto: a falta de menção ao pensamento brasileiro na cultura e na ciência. O substantivo "cultura" só aparece em sentido figurado (cultura da corrupção, cultura da paz). O programa não diz que a cultura enriquece nosso povo. Nem fala na tecnologia aqui criada. Não usa as palavras ciência ou universidade. Embora o Rede tenha membros cientistas, apresenta o Brasil como objeto a ser conhecido, em sua rica diversidade, não como um sujeito que conhece e utiliza esta riqueza. Nosso país aparece só como oportunidade de conhecimento e de ação. O Rede realça nossos biomas mas não valoriza nossas universidades, importante conquista que são. O desenvolvimento científico é referido como consequência futura, não como causa presente.
Como pesquisador, sinto falta. Na divisão internacional do trabalho, voltaríamos a ser natureza sem cultura? Machado de Assis uma vez mostrou o Rio a um estrangeiro. Mas, no fim, o outro olhou para a baía de Guanabara e disse: bonita mesmo é essa natureza! Machado não gostou: comparado com a natureza, tudo o que fizemos de nada vale? É como apagar do mapa o agente humano.
Terceiro: vejo que o programa avançou em relação ao de 2010, que não salientava questões da miséria e pobreza. Agora, já na segunda linha aponta a desigualdade social como um de nossos grandes problemas. Nas dez propostas, fala em "erradicação da pobreza". Isso é bom. Mas seu discurso de economistas liberais prevalece sobre o dos movimentos sociais. Se não se ligar a este último, a causa sustentável carecerá de densidade humana. O programa parece recear dizer o que possa ser interpretado como sendo de esquerda ou mesmo de teor social. Ao se falar em desigualdade, em moradia, em transporte, sempre está presente o conflito social, mas o texto não o enfrenta. Ou, talvez, o Rede tenha mais a dizer à direita esclarecida do que à esquerda esclarecida, duas posições que respeito e que merecem crescer, para melhorar o diálogo e o debate em nossa política.
É claro que há pontos positivos, como a preocupação ecológica e seu interesse pela linguagem dos jovens e a do futuro. A "nova política" e o uso das redes para um relacionamento mais democrático e horizontal têm grande valor. Aliás, segundo me disse um líder do Rede, o manifesto seria um texto ainda em construção. Penso que deveria ser mais debatido, não só pelos sustentáveis, mas pela sociedade.
Até porque, caso em 2014 se embole a disputa pelo papel de antagonista do PT, Marina pode chegar à final - e até vencer. Mas não creio que essa proposta, que é de lenta difusão e absorção, sustente um governo tão logo. Vencendo prematuramente, fracassará no Planalto. Projetos de mudança precisam amadurecer. Não perdem em demorar. A situação é parecida com a do PT nos seus primeiros 20 anos. Assim, se o Rede ganhar em 2014, terá dificuldades. Não terá tido tempo de crescer, de acertar os compassos. Mas o programa precisaria valorizar mais a cultura, a ciência, a pesquisa brasileira e, se quiser, abrir maior espaço para as causas sociais. É o que deveríamos esperar de um partido que pode ter futuro.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo
Fonte: Valor Econômico
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