Uma professora-doutora da universidade da elite do Rio de Janeiro fotografa homem de bermuda e camiseta regata que vislumbrou no Santos-Dumont, e estampa-o no Facebook, sob a indagação: "Aeroporto ou rodoviária?". Nos comentários, compara seus trajes ao de um estivador e arremata: "O pior é que o Mr. Rodoviária está no meu voo. Ao menos, não do meu lado. Ufa!".
Outros integrantes da primeira classe acadêmica carioca se solidarizam nos comentários. "Esse tipo de passageiro fica roçando o braço peludo no seu porque não respeita os limites do assento." "O glamour de voar definitivamente se foi." "Isso é só uma amostra do que tenho visto pelo Brasil." Sem perceber a autoironia, outra escreve: "O bom senso ficou em casa".
João Santana não poderia sonhar com melhor roteiro de propaganda eleitoral gratuita e espontânea nas redes sociais. A máquina petista sacou a oportunidade e bombou a história através do perfil "Dilma Bolada", no Twitter. Epidemia instantânea na rede.
Em 24 horas, a longeva carreira acadêmica da professora-doutora especializada em "português como segunda língua" estava relegada à décima página de resultados da busca pelo seu nome no Google. A primeira centena de links leva à história do Mr. Rodoviária - que se identificou e fala em processo. Mínima parte cita o envergonhado pedido de desculpas da professora-doutora.
O episódio é fascinante sob qualquer ângulo que se queira olhar. O mais óbvio é o efeito Big Brother. A sensação que o internauta tem de penetrar um círculo fechado e descobrir o que as pessoas realmente pensam e são capazes de dizer quando se acham dispensadas do politicamente correto e da mínima cortesia.
Soa exagerado de tão cru. Se fosse cena de novela, seria forçada demais e perderia credibilidade. Mas, como os personagens têm nome, cargo e página no Facebook, o exagero vira revelação: "Ah, é isso que eles acham". Cai-se no estereótipo oposto. Se o emergente parece estivador, é peludo e ultrapassa os limites, a elite é demofóbica, cruel e segregacionista - sem exceções.
Talvez alguns dos personagens tenham escrito o que escreveram por pressão social, por vontade de ser aceito no grupo, de pertencer. Afinal, se o reitor e a doutora estão dizendo, essa só pode ser a norma, "a coisa certa" a fazer. É outro aspecto surreal da história: supostos guardiões da alta cultura disseminam e endossam preconceitos que deveriam combater.
Destila ainda do episódio uma ingênua nostalgia. A crença numa fantasia comercial. "Glamour de voar?". Um voo de carreira é das experiências mais desagradáveis que há: fila de check-in, fila para despachar bagagem, fila para passar no raio X, fila para embarcar, para pegar a mala. Horas confinado em espaço apertado, respirando ar seco e, quando há, comendo comida requentada.
O tal glamour só existiu nas propagandas e nos filmes destinados a convencer o público de que pagar caro por horas de tormento é um privilégio. Poderia a elite intelectual sentir falta de algo que jamais existiu? Ou a nostalgia é uma metáfora? Será saudade de quando as divisões sociais eram claras, os espaços públicos eram exclusivos e as distâncias entre classes, intransponíveis?
Uma parte importante da sociedade brasileira incomoda-se com a novidade de um mercado de massa que nivelou o jogo via acesso quase universal ao consumo. Os incomodados não são os super-ricos, que continuam inalcançáveis. A aproximação dos que vêm de trás perturba quem já estava no meio e se sente igualado ou até superado por quem chegou agora e já quer sentar na janelinha.
Raras vezes esse conflito apareceu tão explícito quanto no caso da professora-doutora e seu Mr. Rodoviária. Mas a raridade tende a desaparecer mais rápido do que o glamour de voar. Como o mesmo episódio demonstrou, expor contradições e explorar divisões dá voto. Rodoviária e aeroporto viraram cabos eleitorais.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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