- O Estado de S. Paulo
É impossível não concordar com o ex-governador gaúcho Tarso Genro (PT-RS) quando disse, na reunião de ontem do Diretório Nacional petista, que é preciso por em curso no partido uma “renovação profunda” porque “existe uma crise de perspectivas na esquerda mundial e em todo o campo democrático”.
Fiel a seu estilo e a sua biografia política, Tarso escancarou, com a frase nada sutil, o mal-estar que viceja no PT e no conjunto das forças democráticas mais à esquerda. Não perguntou, mas poderia tê-lo feito: por que não há protagonismo dos democratas radicais (que tomam as coisas pela raiz), por que seu projeto político não aparece, não decola e não se traduz em fatos? Por que, num contexto em que crescem as dificuldades econômicas, reduzem-se as receitas públicas e aumentam as faixas de pobreza, a esquerda resfolega, parece em estado de choque e quase nada propõe? Por que, enfim, no caso brasileiro, o PT segue um roteiro insosso e paralisante, deixando-se passivamente pautar pelo mercado, ao passo que o PSDB, o PSB, o PPS, o PSol e outras forças de esquerda e centro-esquerda não sobem ao palco para recitar suas falas?
Os partidos que respiram no mundo — como o Syriza grego e o emergente Podemos! espanhol — ainda não foram provados, mas seguem claramente a trilha da “reinvenção”: rejeitam fórmulas repisadas, discursos cansados, ideologias formatadas como receitas de bolo, estruturas burocráticas e hierarquias pesadas, lideranças messiânicas. Buscam substituir tudo isso por construções mais horizontais, flexíveis, criativas, críticas do mundo político realmente existente e dos poderes fáticos. Suas lideranças são jovens, têm pegada midiática, trabalham em rede e não desejam fazer muitas concessões à política estabelecida. Querem não só mudar o governo, mas alterar o “paradigma” das políticas de austeridade prevalecentes e, por aí, modificar o modo mesmo como as esquerdas operam quando chegam ao governo ou fazem política. Pretendem dialogar com blocos sociais, mais que com alianças políticas ou eleitorais.
Em grego, Syriza é o acrônimo de “coalizão das esquerdas radicais”. São palavras que vêm permitindo interpretações equivocadas, como se ser radical significasse ser extremista, posição que se auto-exclui de maiores esforços unitários. Syriza não pretende funcionar como um agregado de pequenos partidos, mas formar uma coalizão sociopolítica interessada em recompor o bloco social: unir o que o neoliberalismo separou. Como gosta de dizer Tsipras, “a verdadeira luta começará depois da vitória eleitoral. Nossa experiência de governo terá como epicentro os movimentos, porque sem o apoio das pessoas não poderemos por em prática nossas ideias”.
Num mundo plural e fragmentado como o de hoje, as esquerdas também se mostram fragmentadas. Parte deste processo tem a ver com os estragos do neoliberalismo. O social seguiu uma via, o político foi em outra direção. Deu-se o mesmo com a luta por direitos, a questão dos valores e a luta por conquistas materiais. Sindicatos e movimentos culturais passaram a falar línguas distintas, do mesmo modo que os indivíduos deixaram de dialogar com as pautas coletivas. Têm faltado pontes democráticas, esforços unitários e de recomposição, excessiva concentração na conquista de poder e espaços eleitorais, carência enorme de uma ideia de sociedade que sirva de referência. A conflitualidade é tensa e intensa, mas produz poucos efeitos positivos.
Os partidos continuam a ser essenciais para a democracia, mas só poderão fazê-la funcionar bem se eles próprios funcionarem bem e refletirem os humores sociais. De costas para a sociedade só fazem atrapalhar. Se a sociedade vive em rede e está mais dinâmica e plural do que nunca, os partidos precisam saber acompanhá-la. Não há modelos rígidos de organização partidária, nem muito menos partidos que “comandem” mediante jogos de cena e “linhas programáticas” que sejam seguidas pelas massas. Nas sociedades atuais, não há mais espaço para que se sustente a ideia de que a consciência das pessoas é formada a partir da ação de um partido que sabe tudo. Ouvir e discutir (confrontar e divergir, portanto) tornaram-se critérios democráticos que precisam ser vividos sem que esta ou aquela parte se afirmem de antemão como superiores, ou melhores do que os demais.
Não dá para saber se Syriza e Podemos! vencerão, mas a mensagem que proclamam vem embalada pela brisa fresca das promessas dignificantes.
Enquanto isso, no Brasil, Tarso dixit à parte, a carroça reformista segue empacada. E aquele que se propôs arrogantemente a ser o carroceiro — muitas vezes vestindo as roupas do condutor de massas — persiste imerso numa cegueira paralisante, que o leva a não se posicionar com clareza, a não definir para onde caminhar e o que propor aos que ainda aceitam sua direção. Crise de perspectivas em estado bruto.
Dada sua explicitação plena, a ideia de “renovação profunda” ganha foros de urgência, de esforço emergencial. Precisa, pois, ser traduzida adequadamente, convertida em programa de trabalho intelectual amplo, para assim ganhar densidade e se converter em cultura. O pior que pode acontecer agora é a “renovação” virar expediente para consolidar partidos no governo ou reforçar projetos de poder que estão a fazer água por todos os poros.
Renovar é preciso e em profundidade, de forma radical. A começar dos próprios métodos com que se tentará a renovação: que se ponha o tema à luz plena do dia, aberto a todos, sem matrizes teóricas rígidas, discursos encomendados e circuitos deliberativos engessados.
Tarefa tanto mais difícil quanto inadiável.
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* Professor de Teoria Política da Unesp
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