- O Estado de S. Paulo
“Agora que as coisas ficaram mais difíceis, os eleitores se tornaram mais céticos em relação aos políticos (...). Este ceticismo seria saudável caso se esperasse pouco do governo. O fato, porém, é que dele ainda muito se espera e muito se exige. O resultado pode ser uma mistura tóxica e instável: a dependência força o governo a expandir-se e a sobrecarregar-se demais, enquanto o ceticismo o priva de legitimidade e exacerba os revezes, transformando-os em crise (...) a disfunção caminha de mãos dadas com a desordem.” Esse texto é de um belo livro de J. Micklethwait e A. Wooldridge, A Quarta Revolução, que tem como subtítulo A corrida global para reinventar o Estado.
Os autores tratam dos casos dos países democráticos desenvolvidos e da “competição” com o capitalismo de Estado, do tipo chinês, pela necessária e continuada readaptação do Estado em ambos os contextos. Mas qualquer leitor brasileiro minimamente informado haverá de perceber a relevância da mistura paradoxal, tóxica, instável – e insustentável – entre excessiva dependência do governo e excessivo ceticismo em relação ao Executivo, ao Legislativo e à interação de ambos – que caracteriza a disfuncional situação do Brasil de hoje.
Não chegamos até aqui por acaso. Há uma História que não pode ser ignorada e que levou muitos anos sendo “construída”. Com especial diligência nos últimos oito anos, como se a expansão do Estado, de suas empresas e de seus bancos não conhecesse limites. Mas o que importa agora é o esforço coletivo para tentar superar a situação atual. Não haverá consenso, palavra sempre elusiva, mas o debate ao longo dos últimos anos vem permitindo graus de convergência não irrelevantes em torno do que seria preciso fazer – por que e como. A reforma fiscal (aí incluída a Previdência) é a questão “econômica” fundamental, sem a qual a dívida pública mostrará trajetória insustentável e não haverá retomada do crescimento.
Não é que não se saiba o que fazer; o que não se sabe (principalmente um governo dividido e sem convicção parece não saber) é como tornar politicamente viável o que precisa ser feito. Numa democracia de massas isso depende da capacidade de convencer pessoas. E para convencer pessoas é preciso ter convicção, argumentos e evidências. Em outro contexto, Joseph Nye Jr. escreveu: “Numa democracia, o interesse nacional é simplesmente aquilo que os cidadãos, após deliberação apropriada, afirmam que é (...) lideranças políticas e especialistas podem apontar para os custos de indulgência em certos valores, mas se um público informado discorda, os especialistas não podem negar a legitimidade dessas opiniões”.
É claro que o fundamental dessa opinião são as expressões “após deliberação apropriada” e por “um público informado”. O que nem sempre ocorre. E se mesmo após tais deliberações por um público informado emerge um país profundamente dividido ou uma posição que não seja muito mais que a expressão de um vago desejo? Afinal, a expressão de desejos coletivos não se traduz, naturalmente, em políticas, mudanças legislativas e ações operacionais de governo que transformem desejos e opiniões em realidade.
Os governos Lula e Dilma tentaram resolver esse tipo de questão por meio de uma vertiginosa expansão de “instâncias de comunicação e negociação” com a sociedade. Decreto presidencial de maio de 2014 “normatizou” nada menos que nove dessas instâncias: conselhos de políticas públicas, comissões de políticas públicas, conferências nacionais, mesas de diálogo, fóruns inter-conselhos, audiências públicas, consultas públicas, ambientes virtuais de participação social e ouvidoria pública federal. Rezava o decreto: “A convocação de cada uma destas instâncias caberá à Secretaria-Geral da Presidência da República, que editará portarias com as rotinas e métodos de escolha dos integrantes e periodicidades dos encontros”.
À época, vários integrantes do governo e simpatizantes do processo afirmaram que o decreto apenas formalizava e consolidava uma prática de “comunicação e negociação” com a sociedade há muito estabelecida. Alguns chegaram a mencionar que já existiam milhares dessas instâncias em funcionamento. Devia ser árdua a tarefa do ex-ministro Gilberto Carvalho. Deve ser árdua a tarefa do ministro Miguel Rossetto. Deve ser difícil ao governo Dilma gerenciar mais de três dezenas de “ministérios”, Congresso, governadores e prefeitos, além de milhares dessas “instâncias”, nestes momentos difíceis que vivemos.
Sabemos agora que o governo atual acaba de reviver um meio desativado Conselhão, criado logo no início do primeiro governo Lula. Com quase cem participantes, Lula atribuiu-lhes a responsabilidade de encaminhar “soluções” para grandes temas nacionais, incluída a reforma da Previdência – 14 anos atrás! Esta semana se reúne outro fórum nacional, presidido pelo ministro do Trabalho e da Previdência (mais quatro outros) e reunindo corporações sindicais, empresariais e de aposentados, para discutir a “retomada do crescimento” e a reforma previdenciária. Quem sabe um dia...
Exatamente há um ano (8/2), abri meu artigo neste espaço com as seguintes linhas:
“‘Entendo os que são contra, esta é uma posição que já foi minha”, disse o então presidente da República Ernesto Geisel, cerca de 40 anos atrás, em cadeia nacional de televisão, ao anunciar, entre outras decisões, a abertura do Brasil a investimentos privados na área do petróleo por meio de contratos de risco”. AForça da Realidade (título do artigo) exigiu, como reconheceu o orgulhoso então presidente, mudanças de antigas e caras posições suas. Talvez a presidente Dilma tenha – à sua maneira – de fazer algo parecido. Não haveria desdouro nisso. Depende do tempo de que considere dispor.
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*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
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