domingo, 14 de fevereiro de 2016

Fernando Gabeira: Um país enlouquecido

- O Globo

Que país é esse? País do carnaval? Não totalmente, posso assegurar. Só no Ceará, 55 cidades, algumas delas visitadas por mim, cancelaram a festa popular. Crise econômica, zika e a seca que ainda assola o sertão, apesar das primeiras chuvas de inverno, são as principais causas do cancelamento. Naturalmente, os olhos estavam voltados para o país do carnaval, com suas cores, alegria e a beleza dos corpos.

A ação oficial contra a epidemia deve ir além do marketing. Mas o ano começou em algum momento da semana passada. Brasil real e Brasil fantástico se fundem, de novo, numa dramática unidade. Quem já trabalhou com a questão nuclear sabe como é difícil transmitir a ideia de perigo através da radiação invisível. No caso do zika, o mosquito ainda não foi visto por milhares de pessoas, exceto em fotos microscópicas. A picada é indolor porque sua saliva produz anestésicos. No entanto, a ONU decretou emergência internacional. Obama pediu US$ 1,8 bilhão para investir nas pesquisas e ajudar os países atingidos.

Tanto a ONU como Obama estão, de uma certa forma, falando de nós, pois a recente eclosão do zika foi registrada no Brasil. Foi aqui que se estabeleceu a relação entre o vírus e a microcefalia. Dilma pedalou no carnaval. Outros dirigentes devem ter frequentado os camarotes, se refugiado em sítios, navegado pelas ondas do Atlântico. Tudo bem. Não compartilho de restrições puritanas ao carnaval. Nem acho que os dirigentes têm de trabalhar como escravos. Se pudesse recomendar uma leitura de carnaval, indicaria “A peste”, de Albert Camus. No livro, os ratos mortos apareciam aqui e ali, indicando a chegada da peste bubônica.

No Brasil, os sinais são outros. Crianças com microcefalia aparecem aqui e ali, indicando não a morte, mas o surgimento de uma geração sacrificada. Em Maranguape, onde passei a sexta de carnaval, há 14 casos de microcefalia suspeitos de estarem ligados ao vírus zika. Visitei uma família e constatei, nesse caso, que, apesar do cérebro menor, a criança tem uma excelente saúde. A própria mãe não vê diferença entre ela e o irmão primogênito quando era da mesma idade.

Possivelmente, os problemas virão depois. Não há estrutura para cuidar deles. Mesmo no Rio, os primeiros casos de Guillain-Barré, uma doença paralisante, estão sendo subestimados pelo precário sistema de saúde pública. Uma paciente de Magé tentou em três cidades e só conseguiu internação depois de muita luta da família. O que me chamou a atenção foi a frase da subsecretária de saúde de Petrópolis, diante dos apelos da família da vítima: — Vão catar coquinhos. Vocês vieram de Magé. Essa frase não apenas é uma negação da virtude humana que a peste costuma despertar, a julgar pelo romance de Camus: a solidariedade.

As pessoas pensam dentro do seu quadradinho. O presidente do Quênia, por exemplo, disse que não mandaria atletas para a Olimpíada se o país se mostrasse incapaz de resolver a epidemia de zika.

Acontece que a tarefa não é apenas do Brasil. Obama pediu dinheiro ao Congresso, também para os países atingidos. O vírus não nasceu aqui. Possivelmente veio da Polinésia, com atletas que disputaram uma regata no Rio. E chegou à própria Polinésia através de Uganda. A humanidade está no mesmo barco, sobretudo com a globalização. No entanto, no epicentro desse drama mundial, o país canta e dança feliz. Sua presidente pedala, os líderes estão enfurnados em sítios e tríplex de propriedade duvidosa.

Desde o fim de 2015, insisto na tecla de que é uma crise econômica, ambiental, sanitária e, certamente, moral. A seca, por exemplo, foi agravada pelo El Niño. Ele já dura quase cinco anos no sertão do Nordeste. Não gostaria de ver Dilma na região vertendo algumas lágrimas, porque isso Dom Pedro já fez. Gostaria de vê-la trabalhando, articulando providências, traçando planos emergenciais.

Da mesma forma, um presidente precisava tratar do tema do zika com uma dedicação e frequência maior do que um simples discurso de TV, escrito por um marqueteiro. O que ela produziu de novo foi a frase: precisamos acabar com o mosquito, antes que ele nasça. Ao visitar no domingo uma barragem completamente seca em Acopiara, uma cidade de 70 mil habitantes, tive uma dolorosa intuição: a crise, a seca, a epidemia acontecendo num país corroído moralmente, com os líderes correndo da polícia, negociando tudo para se manter no cargo — tudo isso pode resultar em tragédia.

E a tragédia não reside somente nos fatores externos, mas na própria cabeça dos brasileiros. Como admitir que, nessas circunstâncias epidêmicas e emergência internacional, esteja se buscando um ministro da saúde no PMDB? No entanto, a escolha do ministro transforma-se num subproduto da luta entre a família Picciani e Eduardo Cunha.

Seria o caso de uma invasão internacional, não com mariners ou forças de paz, mas com enfermeiros e psicólogos, pois o país que tem crianças com microcefalia perdeu a cabeça.

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