- O Globo
Um balanço dos 28 anos da Constituição Cidadã. Thomas Jefferson, um dos “pais-fundadores” da nação norte-americana, disse certa vez que a Constituição pertence aos vivos, e não aos mortos. Isso significa que cada geração tem o direito de reavaliar as condições desse contrato social, de acordo com as necessidades e desafios de seu tempo.
É o que estamos fazendo há muito tempo, reformando a Constituição de 88, que completou esta semana 28 anos. Tarefa que exige “discernimento e desassombro”, segundo o constitucionalista Gustavo Binenbojm, professor titular da Faculdade de Direito da Uerj, a quem pedi balanço desse período sob a égide da Constituição Cidadã, que nasceu antes da queda do Muro de Berlim, como resposta aos anos de ditadura, e provavelmente por isso tem mais direitos que deveres, e muitas vezes torna ingovernável o país.
Binenbojm acha que é preciso reconhecer “tanto aquilo que a Carta de 88 trouxe em termos de avanços civilizatórios à sociedade brasileira, como identificar gargalos, que atravancam ou dificultam nosso desenvolvimento político, econômico e social”. Ele analisou os dois papéis básicos que uma Constituição exerce, o de instrumento de governo e o de carta de direitos.
Para Binenbojm, a Constituição de 88 tem o mérito de haver erigido o Estado brasileiro como uma poliarquia institucional, cujos destaques são a estruturação do Judiciário, do MP e dos Tribunais de Contas, como órgãos de Estado efetivamente independentes, o que dotou o país de um nível de institucionalidade até então inédito, com reflexos positivos no grau de respeito às leis e no combate à corrupção e à impunidade.
Além disso, diz Binenbojm, a Carta ajudou a tornar mais republicana nossa administração pública, com exigências de publicidade, transparência e concurso, forma meritocrática de acesso a cargos públicos, em lugar das velhas práticas de compadrio e nepotismo, típicas do patrimonialismo brasileiro.
Por fim, a ordem constitucional de 88 permitiu a alternância pacífica e democrática do poder político, e, por duas oportunidades, o impeachment do presidente seguiu as regras previstas na Constituição e na lei.
Mas, para Binenbojm, a Constituição tem também falhado em aspectos atinentes ao funcionamento do nosso regime político, favorecendo sistema partidário excessivamente fragmentado e capturado por interesses de corporações, denominações religiosas e até facções criminosas. “Para piorar, o STF errou ao derrubar a lei da cláusula de barreira, alegando que a Constituição não admitiria aquela restrição”, lembra.
Também se pode creditar à Carta a criação de um presidencialismo de coalizão que impõe custos elevadíssimos à governabilidade, e não favorece relação de cooperação saudável entre Legislativo e Executivo.
“Ao descer a minúcias orçamentárias e financeiras, o texto cria vinculações que não são realistas, obrigando sucessivos governos a gastarem capital político em medidas de desvinculação”, afirma Binenbojm.
Por fim, a Federação brasileira não funciona. A Constituição permitiu o centralismo fiscal da União e a fratricida guerra fiscal entre estados, além de ter aberto as portas para a proliferação desenfreada e oportunista de pequenos municípios.
Como carta de direitos, a Constituição exibe cartel misto de êxitos e fracassos. Os êxitos estão nas liberdades fundamentais. O Brasil é hoje uma democracia onde se respeitam as liberdades de expressão, consciência, artística, imprensa, manifestação, credo e prática religiosas, orientação sexual, identificação de gênero.
Binenbojm ressalta o papel do STF na interpretação da Constituição em tais temas, dotando o país dessas garantias básicas do mundo civilizado. Mas, diz Binenbojm, o constituinte agiu com muito idealismo e nenhum pragmatismo no que se refere a direitos sociais, cedendo ao lobby de corporações e sindicatos, além de ignorar os limites financeiros do Estado e da sociedade para arcar com tão vasto elenco de benefícios.
“Ao tentar contemplar catálogo amplo e rígido de direitos trabalhistas, previdenciários, assistenciais, educacionais e culturais, a Constituição acabou por reduzir demasiadamente o espaço para a construção democrática e consensual de soluções adequadas às possibilidades e limites de cada época”, comenta Binenbojm.
No momento em que se discute no Congresso o controle de gastos, Binenbojm ressalta que “o Brasil precisa compreender que levar direitos a sério significa levar o problema da escassez de recursos a sério, o que impõe série de escolhas trágicas envolvidas na sua alocação, sem ceder às tentações populistas e à ilusão fiscal”.
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