- O Globo
Em depoimento de 203 páginas, ex-presidente Fernando Henrique alerta para riscos da desagregação política. A 24 semanas das eleições gerais, o horizonte político não poderia estar mais nebuloso. É grande a fragmentação política. Ela confunde o eleitor e impede até a distinção nas pesquisas dos mais competitivos entre dezena e meia de candidatos à Presidência da República.
Sobram algumas certezas. Uma delas é que, em janeiro de 2019, haverá no Palácio do Planalto alguém eleito em circunstâncias de fragilidades.
Sobram, também, crises na futura agenda presidencial. O próximo presidente terá menos apoio no Congresso do que seus quatro antecessores. E, na melhor das hipóteses, vai atravessar 75% do mandato com as contas no vermelho — o atual governo prevê capacidade de investimento reduzida à metade, com despesas públicas em Previdência Social um terço maiores do que são hoje.
Governo fraco e sem dinheiro é promessa de agonia coletiva, filme antigo para brasileiros. Há alternativa? Sim, e somente na política, desde que se aumente o campo de possibilidades — acredita Fernando Henrique Cardoso.
Quatro décadas atrás, sob o regime militar, ele trocou a biblioteca universitária pela aposta num experimento da caça de votos nas ruas. Reuniu 1,2 milhão de eleitores e aportou no Senado como suplente. Saiu dali nove anos mais tarde, como chanceler. Na sequência, virou ministro da Fazenda e acabou presidente da República — por duas vezes, eleito no primeiro turno.
Aos 86 anos, está convicto de que na História nada é imutável, nada se repete, tampouco se transforma completamente. “Mais do que nunca, é imperativo interpretar o mundo para poder transformá-lo”, incita em “Crise e reinvenção da política no Brasil”, depoimento de 203 páginas aos seus amigos Miguel Darcy de Oliveira e Sergio Fausto, em que procura demonstrar que o Brasil não está “em um beco sem alternativas”.
O texto agradável dá margem até para absoluta discordância sobre as propostas de redesenho do país. Só não é possível negar-lhe mérito na essência: é uma das melhores e mais instigantes reflexões disponíveis sobre a política brasileira nessa encruzilhada eleitoral. Leitura útil a candidatos e, principalmente, eleitores.
Eleição não é unção, observa: “É preciso apoio do eleitor, mas esse apoio não é dado para sempre. Cada decisão tem que ser explicada. O processo de convencimento é um ato permanente de revalidação da legitimidade ou não do governante.” Na presidência, admite, fracassou sempre quando não conseguiu explicar e convencer.
A desagregação que aí está precisa ser revertida com urgência. “Estamos diante de uma encruzilhada: ou bem seremos capazes de reinventar o rumo da política, ou cedo ou tarde a indignação popular explodirá nas ruas, sabe-se lá contra quem e a favor do quê. Ou, o que é pior, o reacionarismo imporá ordem ao que lhe parecerá o caos.”
Na origem da crise identifica “uma raiz cultural antiga”, que emoldura o Tesouro Nacional como tábua de salvação da oligarquia e do corporativismo, em permanente negação de recursos públicos à saúde, à educação, à segurança e às ciências. Assim, valoriza a transparência e a verdade orçamentária como fundamentos de reformas na Constituição. Em contrição, assume “uma parcela de responsabilidade nas deformações institucionais, pois fui líder no Senado da bancada do PMDB, mais tarde do PSDB e, durante algum tempo, relator-adjunto da própria Constituição.”
Fernando Henrique pontua o livro com autocríticas — nota biográfica relevante, pela raridade. Elas soam suaves, se comparadas à crítica do legado dos sucessores, ressalvando no primeiro governo Lula a estabilidade e a melhoria do padrão de renda. Disseca o petismo, principalmente sob Dilma Rousseff: “Desabou ao impacto da crise econômica e da Lava-Jato. Ilusões perdidas de quem acreditou no modo PT de governar. Triste fim. Esse colapso provocou o abalo de todo o sistema político.”
Vislumbra alternativas: “Não estamos atados a alianças automáticas e, a despeito de nossas crises políticas, erros e dificuldades, nos encontramos em um patamar econômico mais elevado do que no tempo da Guerra Fria: criamos uma agricultura moderna, somos o país mais industrializado da América Latina e avançamos em setores modernos de serviços, especialmente no de comunicação e financeiro. Somos uma democracia, apesar das eventuais dificuldades de nosso sistema político.”
Para retomar o rumo, entende ser necessário identificar e confrontar “os inimigos da mudança, os adversários da contemporaneidade: de um lado o estatal-corporativismo, de outro o fundamentalismo de mercado. Ambos incompatíveis com o mundo contemporâneo.”
“Se não tivermos êxito na construção dessa alternativa” — avalia — “corremos o risco de levar ao poder quem dele não sabe fazer uso ou o faz para proveito próprio. E nos arriscamos a perder as oportunidades que a História nos está abrindo para termos um rumo definido.”
A rebeldia, propõe, seria com “um novo polo democrático e popular que se afirme como alternativa tanto à direita autoritária e retrógrada quanto à volta de utopias regressivas como prega boa parte das esquerdas. Não há nada mais urgente a se fazer, quando se olha para as eleições de 2018 e para além delas”.
Reinventar a política é mobilizar. E o que move pessoas, hoje, “são as causas, os movimentos identitários, as reivindicações de liberdade lançadas por grupos e movimentos na sociedade.” Recorre ao poeta português Fernando Pessoa: “Cada um é muitos”.
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