quarta-feira, 12 de junho de 2019

Monica De Bolle*: Chernobyl

- O Estado de S.Paulo

Ao que parece, alguns dos membros Lava Jato não viram que suas ações passavam do equilíbrio ao desequilíbrio

“Onde antes temia o custo da verdade agora apenas pergunto: qual o custo das mentiras?” Termina com essa indagação a minissérie do canal HBO sobre o terrível desastre nuclear de 1986 na Ucrânia, então sob domínio da União Soviética. A série é sobre a tragédia, mas é também sobre um regime pútrido, carcomido pela corrupção e pelas mentiras. As citações memoráveis são quase todas sobre as mentiras. Considerem essa: “Quando a verdade ofende, mentimos e mentimos até não sermos mais capazes de lembrar que ela sequer existe. Mas existe. Está lá”. Ou essa: “Todas as mentiras que contamos são uma dívida com a verdade. Mais cedo ou mais tarde, essa dívida será paga”.

O Brasil vive de mentiras há muitos anos, portanto a dívida com a verdade é vultosa. Algumas dívidas já começaram a ser pagas, como a acumulada após anos de mentiras sobre a economia. Na semana passada escrevi sobre versão tropical da estagnação secular da qual padece o Brasil. Permitam que eu puxe esse fio mais um pouquinho. O PIB quase inercial brasileiro é a dívida que temos a pagar após anos de má condução econômica e do acúmulo de mentiras. As mentiras que nos contavam quando diziam que o País não tinha problema fiscal algum, que tudo estava sob controle. As mentiras que levaram às pedaladas, à expansão desordenada do crédito público, à crença de que tolerar mais inflação hoje traria recompensas na forma de alta do investimento, à ilusão de que a redução da desigualdade era para sempre mesmo com toda a macroeconomia fora do lugar.

Essas foram apenas as mentiras mais recentes, algumas contadas durante o segundo mandato de Lula, muitas contadas ao longo do primeiro mandato de Dilma, mais outras tantas nas campanhas eleitorais. A verdade cobrou seu quinhão em 2015 e 2016, e, implacável, continua a fazê-lo até hoje. Afinal, também tivemos a mentira de que a remoção de Dilma traria o crescimento econômico, a confiança, o investimento, tudo isso de volta, sem prejudicar as instituições do País. Tivemos a mentira de que o teto de gastos de Temer – por necessário que fosse, apesar de mal desenhado – restauraria o motor engatado da atividade econômica.

A verdade, sempre à espreita, é que a economia brasileira perdeu dinamismo há tempos porque os governantes do País pouco se preocuparam em modernizar a indústria, abrir a economia, priorizar a educação, investir na infraestrutura. E, prestem bem atenção: a mentira não tem partido, ou vício ideológico, ou religião, ou gênero, sexo, raça ou cor. A mentira é negação, ofuscação, omissão, distorção. A mentira às vezes é intencional, às vezes não. Nada disso importa.

Chernobyl. Não deveria ser metáfora para esse momento, mas o Brasil é aquele reator que, descontrolado, não consegue parar de aumentar a temperatura do desastre. A Operação Lava Jato desvelou mentira após mentira, expondo políticos, empresários, gente que em outros tempos jamais seria pega pela justiça. No último episódio da série, o físico nuclear Valery Legasov, explica como funciona um reator nuclear.

Didaticamente, expõe os pesos e contrapesos necessários para controlar o elevado grau de instabilidade do processo de fissura atômica. Assim revela como os erros humanos – além do erro de desenho das válvulas de controle do reator – levaram o sistema da estabilidade à total e irreversível instabilidade. Algo disso soa familiar após revelações recentes.

Os responsáveis pela Lava Jato iniciaram os trabalhos como um reator em equilíbrio, a cada etapa gerando a energia necessária para que o mal maior – a corrupção – fosse punido. Contudo, em algum momento, o reator tornou-se instável. Ao que parece, alguns dos responsáveis pela operação Lava Jato não viram claramente como as suas ações passavam rapidamente do equilíbrio ao desequilíbrio, possivelmente cruzando limites que não deveriam jamais ser cruzados.

É importante que se reconheça que nós, não juristas, não especialistas, não investigadores, não sabemos se limites intransponíveis foram realmente atropelados. Para tanto, é preciso que se tenha a investigação – tal qual fizeram os cientistas que conseguiram chegar às causas verdadeiras da explosão de Chernobyl. As verdades precisam estar visíveis para que o País possa sair do processo de autocorrosão no qual está metido há mais de dez anos. Isso requer a devida lucidez para reconhecer que há inocentes e culpados de todos os lados, não importa o partido, a religião, a ideologia

Mentira corrói, cria inimizades, polariza. Mentira destrói. Assistam Chernobyl.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

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