À véspera das eleições, a Carta deve ser lida e relida pelos brasileiros com a mesma devoção que os cristãos deveriam prestar à leitura do Sermão da Montanha
“Nesse
momento não tem empresário, jurista ou artista, é a defesa de todos, das
pessoas que começam a prestar mais atenção e perceber que as coisas estão
transbordando”. Assim falou ao Valor o
empresário Horácio Lafer Piva.
A “Carta às brasileiras e aos brasileiros
em defesa do Estado Democrático de Direito” será lançada na Faculdade de
Direito da USP em 11 de agosto, no Pátio das Arcadas.
Entre tantos parágrafos valiosos, ousei
escolher dois que me tocaram fundo:
“Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em um país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude”.
Mais adiante: “Nossa consciência cívica é
muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao
lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem
democrática”.
À véspera das eleições, a Carta deve ser
lida e relida pelos brasileiros com a mesma devoção que os cristãos deveriam
prestar à leitura do Sermão da Montanha. Diante da empolgação cívica que
avassala o país não resisti a cuidar da devoção democrática do mestre e amigo
Ulysses Guimarães.
Redigido por muitas mãos no alvorecer dos
anos 1980, sob a inspiração de Ulysses Guimarães, o documento “Esperança e
Mudança” dá testemunho de um Brasil que, auguramos, ainda possa resistir aos
esbirros do autoritarismo e da estupidez.
“...A crise nacional não encontrará solução
sem mudanças profundas. Mudanças que só poderão ter início com o fim do
arbítrio e da exceção. Mudanças que haverão de nascer do reencontro do povo com
o poder político. A sociedade brasileira anseia pela Democracia, luta por ela,
sonha com ela. A sociedade repele o arbítrio através de todas as suas formas de
representação de interesses e de organização social: partidos políticos,
movimentos sociais, organizações comunitárias, igrejas, sindicatos,
organizações patronais, profissionais, movimentos setoriais e culturais.
Democracia é Estado de Direito, liberdade
de pensamento e de organização popular, respeito à autonomia dos movimentos
sociais e repousa na existência de partidos políticos sólidos.
Democracia significa voto direto e livre,
significa restauração da dignidade e das prerrogativas do Congresso e do Poder
Judiciário, significa liberdade e autonomia sindical, significa liberdade de
informação e acesso democrático aos meios de comunicação de massa. Democracia
implica democratização das estruturas do Estado, implica resgatar a soberania
nacional, implica redistribuição da renda, criação de empregos e bem-estar
social crescente. A Assembleia Nacional Constituinte haverá de ser o berço de
tudo isso - o berço da Democracia -, o berço pacífico e representativo dos
anseios do povo”.
Em um domingo paulistano, logo após a
derrota das eleições diretas, Ulysses reuniu mais uma vez em sua casa os que
estiveram com ele no combate persistente contra a ditadura. (Vou invocar aqui o
testemunho dos meus amigos João Manuel Cardoso de Mello, Luciano Coutinho e
José Gregori).
Ulysses levantou-se para perorar o seu
Sermão aos Homens da Planície Política, aos que imaginavam convencê-lo das
conveniências da disputa no Colégio Eleitoral. Dentre tantas, guardei as frases
que provocaram lágrimas em sua mulher, Dona Mora, sentada num sofá mais
distante da pequena aglomeração de companheiros de seu marido. “Para o Colégio
Eleitoral eu não vou. Seria uma facada nas costas do povo que se mobilizou nas
praças e nas ruas para participar dos comícios pelas Diretas Já. Digo a vocês,
a conquista da democracia não será completa sem a manifestação da vontade
popular”.
A campanha popular das Diretas foi
derrotada com a cumplicidade de muitos que estavam na oposição, mas temiam a
“radicalidade” de um governo eleito pelo povo. Por isso, os náufragos do regime
militar conseguiram chegar até a praia, acolhidos pelo bote salva-vidas
capitaneado pela turma do deixa-disso.
Apesar da campanha pelas Diretas ter
conseguido forte mobilização popular, não foi capaz de vencer as casamatas do
poder real que, desde sempre, comandam a política brasileira. Essa turma não
tem o hábito de dar refresco ao inimigo. Quanto aos princípios jurídicos, devem
ser respeitados se o povaréu não botar as manguinhas de fora.
Nos eflúvios de civismo democrático que se
desgarram das letras da Carta assinada por milhares de brasileiros em defesa da
soberania popular, não posso negar ao leitor as palavras de Ulysses Guimarães
na sessão de promulgação da outra Carta, a Magna: “A sociedade foi Rubens
Paiva, não os facínoras que o mataram. Foi a sociedade, mobilizada nos
colossais comícios das Diretas Já, que, pela transição e pela mudança, derrotou
o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação
quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser
a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a
promulgação seja nosso grito: Mudar para vencer! Muda, Brasil!”
Em 1992 os caras-pintadas acorreram às ruas
para pedir o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello. Pouco
antes, em longa conversa comigo na presença do jornalista Roberto Müller Filho,
Ulysses Guimarães desfiou temores e preocupações diante do iminente impeachment
do presidente eleito pelo voto popular.
Os receios do Senhor Diretas
concentravam-se no “vício antidemocrático” dos donos do poder, habituados a
manejar os cordéis do arbítrio a seu talante e ao sabor de seus interesses.
Às vésperas da morte trágica, Ulysses
compreendeu que a campanha popular pelas eleições diretas e a Constituição
ainda sofriam o assédio insidioso, persistente do velho e sempre renovado
arranjo oligárquico que controla a vida dos brasileiros.
* (Homenagem a Ulysses Guimarães)
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
Um comentário:
Bolsonaro nunca deu sossego à essa Carta Magna.
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