Valor Econômico
Parece haver uma tendência de parte da
direita de identificar a solidariedade como valor de esquerda. E, portanto, um
alvo justificável
Neste fim de semana os cristãos comemoram a
Páscoa. Uma das mensagens da Páscoa é a de solidariedade. Na tradição cristã, a
morte de Jesus é um sacrifício pela salvação da humanidade. Nesta quinta-feira
ocorre a cerimônia do lava-pés, que celebra a passagem em que Jesus lava os pés
dos apóstolos, num gesto de humildade e fraternidade. Nos últimos três meses,
esses valores estão sob ataque nos EUA de Donald Trump.
O presidente Trump vem fazendo da falta de
empatia e de solidariedade marcas definidoras de seu governo. Ele cortou ajudou
americana vital para crianças, pessoas pobres e doentes pelo mundo. Vem também
explorando com fins políticos a humilhação e o sofrimento. Trata-se de uma
mudança importante na tradição política e social americana.
Apesar de ser uma sociedade que valoriza
muito a responsabilidade individual e a ação privada, os EUA sempre tiveram a
solidariedade como um valor fundamental, talvez um valor fundador, num país
construído por imigrantes que dependiam uns dos outros para sobreviver. Isso
gerou uma cultura do voluntariado, da filantropia, da atuação comunitária e do
espírito de ajuda mútuo que tem poucos paralelos no mundo.
Um símbolo dessa cultura é a tradição de os presidentes americanos fazerem trabalho voluntário (servindo comida ou ajudando a pintar escolas, por exemplo) no feriado dedicado a Martin Luther King.
Nos últimos três meses, porém, Trump vem
atacando essa cultura. Ele cortou quase toda a ajuda externa americana. Entre
os programas que ficaram sem financiamento está o Pepfar, para a prevenção da
aids na África subsaariana. Segundo um estudo publicado neste mês pela revista
especializada “Lancet”, a suspensão do programa, que custa US$ 7,5 bilhões por
ano, pode significar a infecção de cerca de 1 milhão de crianças africanas e a
morte de 460 mil em decorrência da doença até 2030.
Do mesmo modo, o governo Trump cortou o
financiamento ao Programa Mundial de Alimentos (PMA), da ONU, que fornece
alimentos em caráter emergencial a dezenas de milhões de pessoas pelo mundo,
boa parte em países em situação de conflito, como Afeganistão, Síria e Iêmen.
“Isso pode equivaler a uma sentença de morte para milhões de pessoas que
enfrentam fome extrema e inanição”, disse o PMA. Os EUA gastaram em 2024 cerca
de US$ 2 bilhões com programas de ajuda alimentar.
Nenhum país é obrigado a doar ajuda externa,
mas essa é uma prática comum na comunidade internacional desde ao menos o final
da Segunda Guerra Mundial. O Brasil, por exemplo, contribui com alimentos e
financiamento ao PMA. Em 1961 os EUA criaram a USAid, a sua agência oficial de
cooperação internacional, que Trump agora quer fechar.
Apesar de serem há décadas o maior doador
mundial de ajuda oficial ao desenvolvimento (com US$ 63 bilhões em 2023), os
EUA nunca foram particularmente generosos. Esse valor correspondia a 0,24% do
PIB americano em 2023, segundo a OCDE. A meta da ONU é que os países ricos doem
ao menos 0,7% de seu PIB. Alguns países, como Noruega, Luxemburgo e Suécia,
doaram cerca de 1% do PIB. Sob qualquer parâmetro, os EUA estão entre os dez
mais ricos do mundo. Mas agora a ajuda americana deve despencar.
Além do corte de ajuda, outros episódios
ilustram a insensibilidade do governo Trump diante do sofrimento alheio. Em
março, a Casa Branca postou uma imagem, no estilo dos desenhos japoneses do
Studio Ghibli, de uma imigrante ilegal sendo detida. Essa imagem foi gerada a
partir de uma foto real da imigrante dominicana chorando. Do mesmo modo, o
governo Trump divulgou imagens degradantes de pessoas sendo deportadas,
algemadas nas mãos e acorrentadas pelos pés.
Controlar a imigração e expulsar pessoas em
situação ilegal faz parte das atribuições de qualquer governo. Acorrentar os
deportados pode até ser o procedimento correto, para proteção dos funcionários
envolvidos na operação. Mas a utilização das imagens para fins propagandísticos
é uma humilhação desnecessária, uma demonstração singular de crueldade.
Trump nunca se mostrou particularmente
empático. Isso ficou claro no prazer que ele parecia transmitir ao demitir os
participantes do seu programa de TV “O Aprendiz”. “Para Donald, não há valor na
empatia, nenhum benefício tangível em cuidar de outras pessoas”, escreveu sobre
ele sua sobrinha, Mary L. Trump, no livro “Demasiado e Nunca Suficiente — Como
a minha família criou o homem mais perigoso do mundo”.
Isso fica evidente também no histórico de
pouca filantropia confirmada do presidente. Apesar de sua fortuna, ele não é
conhecido pelas suas ações filantrópicas, como é esperado e cobrado dos
bilionários americanos. A Fundação Trump, que deveria ser o seu braço
filantrópico, foi fechada em 2018 depois de uma investigação concluir Trump a
usava principalmente em benefício próprio, como pagar gastos legais.
A empatia não é uma característica essencial
num líder, mas ela ajuda a transmitir confiança e a gerar respeito. Obviamente
que de nada adianta mostrar empatia, mas destruir o futuro dos cidadãos por
meio de políticas catastróficas, como na Venezuela.
Mas a falta de empatia do governo Trump
talvez não seja apenas definida pela personalidade do presidente. Parece haver
uma tendência de parte da direita de identificar a solidariedade como valor de
esquerda. E, portanto, um alvo justificável. A falta de empatia do
ex-presidente Jair Bolsonaro com as vítimas da pandemia de covid-19 foi,
possivelmente, um dos fatores que o fizeram perder a eleição de 2022. Ficou
famosa a sua declaração sobre o Brasil ter passado a China em número de mortes
por covid, em abril de 2020: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”
Os dois principais eixos da política no
Ocidente remontam a duas das três palavras de ordem da Revolução Francesa. A
direita é o partido da liberdade. A esquerda é o partido da igualdade. A
fraternidade, a terceira palavra de ordem, ficou órfã politicamente. Em seu
livro “Direita e Esquerda”, o pensador político italiano Norberto Bobbio,
sugere que a fraternidade é um valor mais ético e relacional do que político e
que é difícil transformá-la num programa de governo ou numa ideologia
partidária.
Certamente a fraternidade ou a solidariedade
podem ser identificadas em certas práticas e programas da esquerda, como a
assistência mútua dos sindicatos de trabalhadores e o Estado de bem-estar
social. Mas há também uma longa e sólida tradição de solidariedade em ambientes
da direita, como nas entidades cristãs.
Ao anunciar as chamadas tarifas recíprocas,
neste mês, Trump afirmou: “Nós vamos cuidar do nosso povo em primeiro lugar,
sinto dizer isso”. Todo governo é eleito para cuidar de seu povo em primeiro
lugar. Mas isso não isenta nenhum governo de demonstrar empatia e praticar a
solidariedade com outros povos necessitados. Ainda mais quando esse governo é o
do país mais poderoso do mundo.
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