Aydano André Motta
DEU EM O GLOBO
A defesa intransigente da democracia, mesmo diante de todos os solavancos institucionais do Brasil, marcou a trajetória de Marcio Moreira Alves até garantir a ele um lugar na história política nacional. Desde o fim da adolescência, o jornalista - e colunista do GLOBO por dez anos - dedicou-se à luta pela liberdade no país e no exterior. A postura corajosa foi o tempero do célebre discurso feito no plenário da Câmara dos Deputados no qual ele, deputado eleito pela Guanabara, conclamava o povo a um "boicote ao militarismo". Coube a Marcio o sinal de que o Congresso não se calaria diante do endurecimento do regime militar iniciado em 1964.
"Quando o Exército não será um valhacouto de torturadores?", desafiava, veemente, no dia 2 de setembro de 1968, da tribuna da Câmara. O motivo do protesto era o fechamento da Universidade Federal de Minas Gerais e a invasão, dias antes, da Universidade de Brasília pela Polícia Militar do Distrito Federal, que ainda espancou diversos estudantes. Vivia-se a antevéspera da era de truculência que começaria em dezembro.
O deputado conclamava o povo a não participar dos festejos do Dia da Independência, boicote "que pode passar também às moças, às namoradas, àquelas que dançam com os cadetes e frequentam os jovens oficiais". As palavras explodiram nos círculos militares, como "ofensivas aos brios e à dignidade das Forças Armadas". Pelos quartéis do Brasil, circularam cópias do discurso, que provocaram reações iradas de oficiais de diversas patentes.
Para calar Marcio, "uma monstruosidade jurídica"
O governo entrou com um pedido de cassação do deputado no Supremo Tribunal Federal pelo "uso abusivo do direito de livre manifestação e pensamento e injúria e difamação das Forças Armadas". Nas palavras do jornalista Elio Gaspari em "A ditadura envergonhada" - primeiro volume da aclamada série "As ilusões armadas", sobre o regime militar -, "a proposição era uma monstruosidade jurídica, visto que a essência da imunidade parlamentar está na inviolabilidade das palavras, opiniões e votos dos deputados e senadores".
A óbvia negativa da Câmara à licença para o processo criou o ambiente de radicalização sonhado pela corrente mais bruta dos à época donos do poder - entre eles, o ministro do Exército, general Aurélio de Lyra Tavares, e o chefe do Gabinete Militar, Jayme Portella, além do próprio presidente, marechal Arthur da Costa Silva. Estava pronto o cenário para a decretação, em 13 de dezembro de 1968, do rosário de truculências que passou à História como o Ato Institucional nº 5.
Radicalizada a ditadura, 11 deputados federais foram cassados - e Marcio Moreira Alves encabeçava a lista. O Brasil deixava de ser lugar para democratas, e o jornalista seguiu para o exílio, deixando o país clandestinamente em direção ao Chile, onde permaneceu até 1971. Durante esse período, ele percorreu Venezuela, Argentina, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, México e Estados Unidos, para realizar concorridas palestras em mais de 40 universidades.
Em 1971, foi para a França, onde fez doutorado pela Fundação Nacional de Ciências Políticas, de Paris. Três anos depois, mudou-se para Portugal, para ser professor do Instituto Superior de Economia de Lisboa. Enquanto isso, no Brasil, era julgado à revelia - e absolvido pela 2ª Auditoria da Marinha. Em dezembro de 1976, no entanto, o Superior Tribunal Militar (STM) condenou Marcio a dois anos e três meses de reclusão pelo discurso famoso.
O jornalista só voltaria ao Brasil com a anistia, em 1979, quando filiou-se ao MDB para tentar recuperar, pelo voto, seu lugar na Câmara na eleição de 1982. Ficou apenas com uma suplência. As atividades profissionais estavam concentradas em artigos para o jornal "Tribuna da Imprensa".
Em 1987, Marcio assumiu a subsecretaria de Relações Internacionais do governo Moreira Franco, no Rio, destacando-se pela mobilização para conseguir recursos no exterior destinados a ajudar as vítimas das enchentes que castigaram o Rio e Petrópolis, matando 55 pessoas, em fevereiro de 1988. Dois anos depois, deixou o cargo, para montar uma consultoria para assuntos políticos, em sociedade com o cientista político Sérgio Abranches.
No mesmo ano, decidiu mergulhar definitivamente no que fazia melhor - o ofício de jornalista.
Desligou-se do PMDB e reiniciou suas colaborações, desta vez com o "Jornal do Brasil" e "O Estado de S.Paulo". Em agosto de 1993, O GLOBO e o "Estadão" firmaram parceria para enviá-lo a Brasília, onde ficaria encarregado da cobertura da revisão da Constituição promulgada cinco anos antes. A partir daí, tornou-se colunista de política do GLOBO, consolidando estilo inovador, que não ficou preso ao cotidiano de Brasília. Marcio tratava também de aspectos da vida brasileira, das capitais ao interior mais remoto.
Fôlego de jovem repórter na série "Brasil profundo"
Nem o prestígio de uma das colunas mais lidas do jornalismo brasileiro o fez abdicar do trabalho de repórter, como prova a série "Brasil profundo", que apresentou aos leitores um país desconhecido dos grandes centros urbanos. "O Brasil profundo, que busco para contar as suas histórias, não precisa ser pobre nem estar longe do Rio e de São Paulo. Basta ser invisível para a mídia nacional. O ofício de repórter também anda meio esquecido, desde que os melhores passaram a ocupar cargos administrativos e a comandar redações imensas. Como é o ofício que aprendi adolescente e que nunca deixei de amar, tratarei de exercê-lo ao longo das próximas semanas. Espero que gostem das histórias que vou contar", escreveu Marcio, na primeira página do GLOBO de 15 de março de 2003, quando a série começou a ser publicada.
Era o mesmo repórter que, com apenas 20 anos, foi enviado pelo "Correio da Manhã" para cobrir a disputa de ingleses e egípcios pelo Canal de Suez. Ou que foi baleado num tiroteio entre deputados na Assembleia Legislativa de Alagoas, em setembro de 1957. Mesmo ferido, Marcio enviou a reportagem ao jornal, num trabalho de arrojo consagrado com a conquista do Prêmio Esso daquele ano.
O carioca Marcio Moreira Alves, ou Marcito como o chamavam os amigos, morreu ontem, aos 72 anos, de complicações decorrentes de um acidente vascular cerebral. Deixa viúva Madalena, com quem se casou em maio de 2004, e três filhos. O corpo será velado a partir de 9h na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Às 14h, seguirá para o Crematório no Cemitério do Caju.
DEU EM O GLOBO
A defesa intransigente da democracia, mesmo diante de todos os solavancos institucionais do Brasil, marcou a trajetória de Marcio Moreira Alves até garantir a ele um lugar na história política nacional. Desde o fim da adolescência, o jornalista - e colunista do GLOBO por dez anos - dedicou-se à luta pela liberdade no país e no exterior. A postura corajosa foi o tempero do célebre discurso feito no plenário da Câmara dos Deputados no qual ele, deputado eleito pela Guanabara, conclamava o povo a um "boicote ao militarismo". Coube a Marcio o sinal de que o Congresso não se calaria diante do endurecimento do regime militar iniciado em 1964.
"Quando o Exército não será um valhacouto de torturadores?", desafiava, veemente, no dia 2 de setembro de 1968, da tribuna da Câmara. O motivo do protesto era o fechamento da Universidade Federal de Minas Gerais e a invasão, dias antes, da Universidade de Brasília pela Polícia Militar do Distrito Federal, que ainda espancou diversos estudantes. Vivia-se a antevéspera da era de truculência que começaria em dezembro.
O deputado conclamava o povo a não participar dos festejos do Dia da Independência, boicote "que pode passar também às moças, às namoradas, àquelas que dançam com os cadetes e frequentam os jovens oficiais". As palavras explodiram nos círculos militares, como "ofensivas aos brios e à dignidade das Forças Armadas". Pelos quartéis do Brasil, circularam cópias do discurso, que provocaram reações iradas de oficiais de diversas patentes.
Para calar Marcio, "uma monstruosidade jurídica"
O governo entrou com um pedido de cassação do deputado no Supremo Tribunal Federal pelo "uso abusivo do direito de livre manifestação e pensamento e injúria e difamação das Forças Armadas". Nas palavras do jornalista Elio Gaspari em "A ditadura envergonhada" - primeiro volume da aclamada série "As ilusões armadas", sobre o regime militar -, "a proposição era uma monstruosidade jurídica, visto que a essência da imunidade parlamentar está na inviolabilidade das palavras, opiniões e votos dos deputados e senadores".
A óbvia negativa da Câmara à licença para o processo criou o ambiente de radicalização sonhado pela corrente mais bruta dos à época donos do poder - entre eles, o ministro do Exército, general Aurélio de Lyra Tavares, e o chefe do Gabinete Militar, Jayme Portella, além do próprio presidente, marechal Arthur da Costa Silva. Estava pronto o cenário para a decretação, em 13 de dezembro de 1968, do rosário de truculências que passou à História como o Ato Institucional nº 5.
Radicalizada a ditadura, 11 deputados federais foram cassados - e Marcio Moreira Alves encabeçava a lista. O Brasil deixava de ser lugar para democratas, e o jornalista seguiu para o exílio, deixando o país clandestinamente em direção ao Chile, onde permaneceu até 1971. Durante esse período, ele percorreu Venezuela, Argentina, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, México e Estados Unidos, para realizar concorridas palestras em mais de 40 universidades.
Em 1971, foi para a França, onde fez doutorado pela Fundação Nacional de Ciências Políticas, de Paris. Três anos depois, mudou-se para Portugal, para ser professor do Instituto Superior de Economia de Lisboa. Enquanto isso, no Brasil, era julgado à revelia - e absolvido pela 2ª Auditoria da Marinha. Em dezembro de 1976, no entanto, o Superior Tribunal Militar (STM) condenou Marcio a dois anos e três meses de reclusão pelo discurso famoso.
O jornalista só voltaria ao Brasil com a anistia, em 1979, quando filiou-se ao MDB para tentar recuperar, pelo voto, seu lugar na Câmara na eleição de 1982. Ficou apenas com uma suplência. As atividades profissionais estavam concentradas em artigos para o jornal "Tribuna da Imprensa".
Em 1987, Marcio assumiu a subsecretaria de Relações Internacionais do governo Moreira Franco, no Rio, destacando-se pela mobilização para conseguir recursos no exterior destinados a ajudar as vítimas das enchentes que castigaram o Rio e Petrópolis, matando 55 pessoas, em fevereiro de 1988. Dois anos depois, deixou o cargo, para montar uma consultoria para assuntos políticos, em sociedade com o cientista político Sérgio Abranches.
No mesmo ano, decidiu mergulhar definitivamente no que fazia melhor - o ofício de jornalista.
Desligou-se do PMDB e reiniciou suas colaborações, desta vez com o "Jornal do Brasil" e "O Estado de S.Paulo". Em agosto de 1993, O GLOBO e o "Estadão" firmaram parceria para enviá-lo a Brasília, onde ficaria encarregado da cobertura da revisão da Constituição promulgada cinco anos antes. A partir daí, tornou-se colunista de política do GLOBO, consolidando estilo inovador, que não ficou preso ao cotidiano de Brasília. Marcio tratava também de aspectos da vida brasileira, das capitais ao interior mais remoto.
Fôlego de jovem repórter na série "Brasil profundo"
Nem o prestígio de uma das colunas mais lidas do jornalismo brasileiro o fez abdicar do trabalho de repórter, como prova a série "Brasil profundo", que apresentou aos leitores um país desconhecido dos grandes centros urbanos. "O Brasil profundo, que busco para contar as suas histórias, não precisa ser pobre nem estar longe do Rio e de São Paulo. Basta ser invisível para a mídia nacional. O ofício de repórter também anda meio esquecido, desde que os melhores passaram a ocupar cargos administrativos e a comandar redações imensas. Como é o ofício que aprendi adolescente e que nunca deixei de amar, tratarei de exercê-lo ao longo das próximas semanas. Espero que gostem das histórias que vou contar", escreveu Marcio, na primeira página do GLOBO de 15 de março de 2003, quando a série começou a ser publicada.
Era o mesmo repórter que, com apenas 20 anos, foi enviado pelo "Correio da Manhã" para cobrir a disputa de ingleses e egípcios pelo Canal de Suez. Ou que foi baleado num tiroteio entre deputados na Assembleia Legislativa de Alagoas, em setembro de 1957. Mesmo ferido, Marcio enviou a reportagem ao jornal, num trabalho de arrojo consagrado com a conquista do Prêmio Esso daquele ano.
O carioca Marcio Moreira Alves, ou Marcito como o chamavam os amigos, morreu ontem, aos 72 anos, de complicações decorrentes de um acidente vascular cerebral. Deixa viúva Madalena, com quem se casou em maio de 2004, e três filhos. O corpo será velado a partir de 9h na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Às 14h, seguirá para o Crematório no Cemitério do Caju.
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