DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)
Em 24 de outubro de 1893, num dos trechos mais discretos dos seus Diários, Joaquim Nabuco antecipa, com o visionarismo que lhe foi peculiar, o que hoje, passados 117 anos, a moderna medicina pôs em prática com amplos benefícios para a gestão da saúde e do tempo de médicos e pacientes. O conceito lhe ocorre como um verdadeiro achado pragmático para o qual naturalmente a mentalidade da época ainda não estava preparada. O texto é tanto mais significativo quanto menos se sabe (ou se divulga) que Nabuco - homem voltado tanto para o passado quanto para o presente -, a seu modo, intuía e sonhava o futuro. Não por acaso há uma gigantesca atualidade em seu pensamento, do mesmo modo que na forma límpida e segura em que o registrou. Assim o que nele há de apolíneo e grave e belo continua bem maior do que a exegese (aliás, ainda escassa) operada por uma inteligência nacional pouco preparada para compreendê-lo e estudá-lo. Aproveitando suas próprias palavras, pode-se dizer que ao Brasil faltava "mundo" para lê-lo e apreciá-lo em sua inteireza de pensador complexo e cosmopolita.
Bem, neste ano nacional Joaquim Nabuco, que outros, especialistas e competentes, cuidem, nesta província ou alhures, dos diversos Nabucos. Contento-me humildemente em trazer aos leitores - por curiosa, pitoresca e embebida de futuro - apenas uma esquecida página de seus Diários. Uma página visionária e simbólica em que o pensador e o homem de ação parecem sonhar juntos. Vale transcrevê-la em sua íntegra.
"Uma ideia. Não existe ainda um estabelecimento onde a gente se possa fazer examinar e medir do ponto de vista médico na perfeição. Eu imagino que os haverá no futuro. Antes de se ir a um especialista ou notabilidade, ter-se-á que passar pela casa de observação. Ali o indivíduo será examinado durante o tempo preciso em todos os detalhes e funcionamento do seu organismo por pessoas entendidas. Examinar-lhe-ão os órgãos, os movimentos, as urinas, as digestões, o sono, as forças, tomar-lhe-ão os precedentes, tudo por um grupo de especialistas, e com as informações ou o registro ele irá consultar o especialista indicado, levando a sua folha com as assinaturas de cada perito abaixo da coluna respectiva. Depois de uma vez examinado, o indivíduo poderá apresentar-se de tempos a tempos para observarem a marcha de sua saúde e compará-la com as notações feitas. Um estabelecimento destes, bem montado, cientificamente montado, daria resultado desde já.
Ajudaria muito aos médicos esse exame preliminar do laboratório. Eu imagino uma folha assim: F., nacionalidade, idade, antecedentes, dimensões, anormalidades, proporcionalidades (falhas para mais ou para menos na vitalidade relativamente às médias), observações nos diversos órgãos, urinas, diabetes, digestão, força nervosa, pontos fracos do organismo, lados fortes, hábitos, etc., etc. O indivíduo passaria de mão em mão de especialista, digamos que cinco especialistas bastavam para o exame completo de cada pessoa. Por 100 francos o indivíduo teria um exame completo e minucioso de seu organismo com suas deficiências, seus maus hábitos, as economias que devia fazer por um lado, o que devia queimar por outro, etc., etc., e ninguém dirá que esse passaporte para todos os médicos que ele tivesse que consultar era caro por 100 f. O estabelecimento teria que ser cosmopolita para a sua papeleta em diversas línguas valer em toda parte."
Em 24 de outubro de 1893, num dos trechos mais discretos dos seus Diários, Joaquim Nabuco antecipa, com o visionarismo que lhe foi peculiar, o que hoje, passados 117 anos, a moderna medicina pôs em prática com amplos benefícios para a gestão da saúde e do tempo de médicos e pacientes. O conceito lhe ocorre como um verdadeiro achado pragmático para o qual naturalmente a mentalidade da época ainda não estava preparada. O texto é tanto mais significativo quanto menos se sabe (ou se divulga) que Nabuco - homem voltado tanto para o passado quanto para o presente -, a seu modo, intuía e sonhava o futuro. Não por acaso há uma gigantesca atualidade em seu pensamento, do mesmo modo que na forma límpida e segura em que o registrou. Assim o que nele há de apolíneo e grave e belo continua bem maior do que a exegese (aliás, ainda escassa) operada por uma inteligência nacional pouco preparada para compreendê-lo e estudá-lo. Aproveitando suas próprias palavras, pode-se dizer que ao Brasil faltava "mundo" para lê-lo e apreciá-lo em sua inteireza de pensador complexo e cosmopolita.
Bem, neste ano nacional Joaquim Nabuco, que outros, especialistas e competentes, cuidem, nesta província ou alhures, dos diversos Nabucos. Contento-me humildemente em trazer aos leitores - por curiosa, pitoresca e embebida de futuro - apenas uma esquecida página de seus Diários. Uma página visionária e simbólica em que o pensador e o homem de ação parecem sonhar juntos. Vale transcrevê-la em sua íntegra.
"Uma ideia. Não existe ainda um estabelecimento onde a gente se possa fazer examinar e medir do ponto de vista médico na perfeição. Eu imagino que os haverá no futuro. Antes de se ir a um especialista ou notabilidade, ter-se-á que passar pela casa de observação. Ali o indivíduo será examinado durante o tempo preciso em todos os detalhes e funcionamento do seu organismo por pessoas entendidas. Examinar-lhe-ão os órgãos, os movimentos, as urinas, as digestões, o sono, as forças, tomar-lhe-ão os precedentes, tudo por um grupo de especialistas, e com as informações ou o registro ele irá consultar o especialista indicado, levando a sua folha com as assinaturas de cada perito abaixo da coluna respectiva. Depois de uma vez examinado, o indivíduo poderá apresentar-se de tempos a tempos para observarem a marcha de sua saúde e compará-la com as notações feitas. Um estabelecimento destes, bem montado, cientificamente montado, daria resultado desde já.
Ajudaria muito aos médicos esse exame preliminar do laboratório. Eu imagino uma folha assim: F., nacionalidade, idade, antecedentes, dimensões, anormalidades, proporcionalidades (falhas para mais ou para menos na vitalidade relativamente às médias), observações nos diversos órgãos, urinas, diabetes, digestão, força nervosa, pontos fracos do organismo, lados fortes, hábitos, etc., etc. O indivíduo passaria de mão em mão de especialista, digamos que cinco especialistas bastavam para o exame completo de cada pessoa. Por 100 francos o indivíduo teria um exame completo e minucioso de seu organismo com suas deficiências, seus maus hábitos, as economias que devia fazer por um lado, o que devia queimar por outro, etc., etc., e ninguém dirá que esse passaporte para todos os médicos que ele tivesse que consultar era caro por 100 f. O estabelecimento teria que ser cosmopolita para a sua papeleta em diversas línguas valer em toda parte."
Como se observa, não faltava a Nabuco imaginação criadora de futuro aliada a um sentido quase tátil de concretude e de ação. Eis por que soube responder às grandes questões que a realidade social lhe impunha. Seu cosmopolitismo não excluiu a nação, seu refinamento não o impediu de ver o real agônico que o cercava, as causas que abraçou nunca o cegaram para o amanhã. Tanto o passado quanto o futuro igualmente lhe interessavam. Seus Diários, sua obra e seu ideário espelham essa atitude. Por isso, valeu por muitos e sonhou por muitos que não podiam sonhar.
» Paulo Gustavo é escritor e mestre em teoria da literatura
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