No lugar da cultura de hiperexposição do antecessor, Dilma assinala sua tendência a um governo mais administrativo
Da lavra do politólogo Sérgio Abranches, na altura da década de 80, a expressão "presidencialismo de coalizão" acabou por se fixar no vocabulário político geral da nação. Não apenas cientistas políticos a utilizam, mas jornalistas, políticos e o povo em geral. As intenções originais, contudo, eram mais modestas. Tratava-se de entender o funcionamento do sistema político brasileiro implantado em 1946 e destruído pelo republicídio de 1964. A expressão buscava tão somente fixar de modo conceitual o amalgama institucional brasileiro, um composto confuso que incluía federalismo, bicameralismo, presidencialismo e representação proporcional.
Trocando em miúdos, a fragmentação política e social brasileira - tanto regional como partidária - encontrava abrigo em um sistema eleitoral que, dada sua característica proporcional e não majoritária, aparecia como mais inclinado a representação inclusiva, e igualmente fragmentada, do que à geração de maiorias para governar. Dessa forma, o presidente, eleito pelo voto direto, era obrigada a compor maiorias parlamentares e desenhar seu próprio ministério, com base em ampla coalizão partidária e regional. Essa, a essência do presidencialismo de coalizão, vigente na República de 1946 e reposto na vida política brasileira com o fim do aziago consulado de 1964. Coube ao insigne estadista brasileiro José Sarney e aggiomamento do arranjo. Nenhum dos governos que se lhe seguiram dispensaram a utilização do artifício.
A faceta analítica original da expressão - e seu leve travo crítico - deu lugar, entre os politólogos conservadores, a um verdadeiro efeito de naturalização. A expressão parece hoje mais designar um desígnio inamovível da natureza do que um arranjo histórico sujeito a obsolescência. Toma-se a expressão como descritiva e, mais do que isso, como estado de natureza irrecorrível, quando não revestida de justificativas que, mais do que apego obsessivo ao realismo, revelam preferências estético-políticas. Não é infrequente ouvir politólogos a corrigir a imperita opinião dos seres ordinários a desancar o que ingenuamente lhes parece ser uma ignóbil porcaria, seja ela a desenvoltura de parlamentares predadores ou a criminosa captura de sufrágio, inscrita de forma indelével nas práticas eleitorais. Há sempre uma voz ponderada, com suposto fundamento cientifico, a dizer que "a" democracia, em todos os países, convive com tais pormenores e o que importa e a qualidade das instituições no atacado, e não varejo do comportamento individual predatório. Lembra bem os pobres passageiros do bonde de Seveso, em um belíssimo conto de Italo Seveso, que, diante do atraso regular de horas de seu único transporte, diziam coisas do seguinte tipo: ouvi falar que o trem que vai para Vladivostok, de uma feita, atrasou três dias...
Vida que segue, as artes da coalizão, no governo Lula, foram acompanhadas de uma modalidade de presidencialismo dotada de atributo contido na ideia de arrumação. Um pouco à moda de Montesquieu, pode-se dizer que, se a coalizão constitui a natureza do governo em questão, a animação o põe em movimento. Lula foi inexcedível nas artes do presidencialismo de animação.
A presidente Dilma Rousseff não possui - e, ao que tudo indica, não pretende possuir - proficiência na matéria. Seu primeiro mês, se comparado ao ruído e à ubiquidade do antecessor, dá a impressão de que a governo está em estado de pré-temporada, recluso em alguma estância hidromineral erma. Isso não é necessariamente mau. Governos lidam com frequencia com temas e questões enfadonhos, que exigem mais focalização competente do que o recurso recorrente à fanfarra.
Dilma Rousseff montou sua equipe de governo dentro dos padrões da ortodoxia. Reservou para os de maior confiança ministérios estratégicos e, na maioria dos demais quase duas dezenas -, procedeu à praxe. A desenvoltura de predadores notórios deve ser vista tal como os médicos interpretam nossos hemogramas; em busca de marcadores que indicam más, notícias. Na primeira reunião da equipe, no entanto, a presidente deu sinais de que pretende se demarcar, se não da prática das coalizões, ao menos da alegria e do estar à vontade que a acompanhavam quando conduzida por seu antecessor. Seu enfado com o inacreditável ministro do Turismo, a discorrer sobre mais de urna centena de metas, e 0 aviso dado aos que cogitam de delinquir podem ser interpretados como bons sinais. Necessários, mas se calhar, insuficientes.
No lugar do presidencialismo de animação, Dilma Rousseff, aos poucos, afirma sua própria versão do regime: um presidencialismo de gestão. Mais do que interromper a cultura da hiperexposição de seu antecessor em uma república que se acostumou favoravelmente à animação, o presidencialismo de gestão, se levado a sério, choca-se com a natureza do regime, fundado na grande coalizão. A não ser que seja um rótulo vazio, em movimento retórico de baixa extração, a afirmação da gestão como núcleo da experiência republicana, pace Dilma, é incompatível com a demografia do próprio governo. De modo mais direto, alguém vai ter que sobrar: republicanos ou republicidas.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS
Da lavra do politólogo Sérgio Abranches, na altura da década de 80, a expressão "presidencialismo de coalizão" acabou por se fixar no vocabulário político geral da nação. Não apenas cientistas políticos a utilizam, mas jornalistas, políticos e o povo em geral. As intenções originais, contudo, eram mais modestas. Tratava-se de entender o funcionamento do sistema político brasileiro implantado em 1946 e destruído pelo republicídio de 1964. A expressão buscava tão somente fixar de modo conceitual o amalgama institucional brasileiro, um composto confuso que incluía federalismo, bicameralismo, presidencialismo e representação proporcional.
Trocando em miúdos, a fragmentação política e social brasileira - tanto regional como partidária - encontrava abrigo em um sistema eleitoral que, dada sua característica proporcional e não majoritária, aparecia como mais inclinado a representação inclusiva, e igualmente fragmentada, do que à geração de maiorias para governar. Dessa forma, o presidente, eleito pelo voto direto, era obrigada a compor maiorias parlamentares e desenhar seu próprio ministério, com base em ampla coalizão partidária e regional. Essa, a essência do presidencialismo de coalizão, vigente na República de 1946 e reposto na vida política brasileira com o fim do aziago consulado de 1964. Coube ao insigne estadista brasileiro José Sarney e aggiomamento do arranjo. Nenhum dos governos que se lhe seguiram dispensaram a utilização do artifício.
A faceta analítica original da expressão - e seu leve travo crítico - deu lugar, entre os politólogos conservadores, a um verdadeiro efeito de naturalização. A expressão parece hoje mais designar um desígnio inamovível da natureza do que um arranjo histórico sujeito a obsolescência. Toma-se a expressão como descritiva e, mais do que isso, como estado de natureza irrecorrível, quando não revestida de justificativas que, mais do que apego obsessivo ao realismo, revelam preferências estético-políticas. Não é infrequente ouvir politólogos a corrigir a imperita opinião dos seres ordinários a desancar o que ingenuamente lhes parece ser uma ignóbil porcaria, seja ela a desenvoltura de parlamentares predadores ou a criminosa captura de sufrágio, inscrita de forma indelével nas práticas eleitorais. Há sempre uma voz ponderada, com suposto fundamento cientifico, a dizer que "a" democracia, em todos os países, convive com tais pormenores e o que importa e a qualidade das instituições no atacado, e não varejo do comportamento individual predatório. Lembra bem os pobres passageiros do bonde de Seveso, em um belíssimo conto de Italo Seveso, que, diante do atraso regular de horas de seu único transporte, diziam coisas do seguinte tipo: ouvi falar que o trem que vai para Vladivostok, de uma feita, atrasou três dias...
Vida que segue, as artes da coalizão, no governo Lula, foram acompanhadas de uma modalidade de presidencialismo dotada de atributo contido na ideia de arrumação. Um pouco à moda de Montesquieu, pode-se dizer que, se a coalizão constitui a natureza do governo em questão, a animação o põe em movimento. Lula foi inexcedível nas artes do presidencialismo de animação.
A presidente Dilma Rousseff não possui - e, ao que tudo indica, não pretende possuir - proficiência na matéria. Seu primeiro mês, se comparado ao ruído e à ubiquidade do antecessor, dá a impressão de que a governo está em estado de pré-temporada, recluso em alguma estância hidromineral erma. Isso não é necessariamente mau. Governos lidam com frequencia com temas e questões enfadonhos, que exigem mais focalização competente do que o recurso recorrente à fanfarra.
Dilma Rousseff montou sua equipe de governo dentro dos padrões da ortodoxia. Reservou para os de maior confiança ministérios estratégicos e, na maioria dos demais quase duas dezenas -, procedeu à praxe. A desenvoltura de predadores notórios deve ser vista tal como os médicos interpretam nossos hemogramas; em busca de marcadores que indicam más, notícias. Na primeira reunião da equipe, no entanto, a presidente deu sinais de que pretende se demarcar, se não da prática das coalizões, ao menos da alegria e do estar à vontade que a acompanhavam quando conduzida por seu antecessor. Seu enfado com o inacreditável ministro do Turismo, a discorrer sobre mais de urna centena de metas, e 0 aviso dado aos que cogitam de delinquir podem ser interpretados como bons sinais. Necessários, mas se calhar, insuficientes.
No lugar do presidencialismo de animação, Dilma Rousseff, aos poucos, afirma sua própria versão do regime: um presidencialismo de gestão. Mais do que interromper a cultura da hiperexposição de seu antecessor em uma república que se acostumou favoravelmente à animação, o presidencialismo de gestão, se levado a sério, choca-se com a natureza do regime, fundado na grande coalizão. A não ser que seja um rótulo vazio, em movimento retórico de baixa extração, a afirmação da gestão como núcleo da experiência republicana, pace Dilma, é incompatível com a demografia do próprio governo. De modo mais direto, alguém vai ter que sobrar: republicanos ou republicidas.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS
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