Saques e especulação contra vítimas do desastre ambiental no Rio mostram que, ante a lei da força, a civilização vira quimera
Parece que este país se renova em suas tragédias. Alguém já disse isso mais de uma vez. Este povo, na maioria, aparentemente recolhido ao mesmismo do cotidiano, que só sai da toca nos carnavais para pôr a máscara do que não é, nas tragédias se revela de fato. Tradições antigas de pertencimento e solidariedade ganham vida nessas horas, põem-nos para fora de nossos limites e de nossas contenções. Vimos isso nesses dias da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro. Mesmo pessoas golpeadas profundamente pela dor da perda de gente muito próxima, que nem haviam enterrado seus mortos, já estavam ajudando a resgatar outros e salvar vidas.
Mas do fundo de nossas tradições vem também um dos nossos mais deploráveis traços culturais. Em primeiro lugar, sem dúvida o saque do que restava das casas das vítimas, com gente até se oferecendo como voluntária para ajudar apenas para ter a oportunidade de saquear. Maculando a generosa dedicação de outros. Ou o roubo, pura e simples, como fez aquele funcionário da Uerj que, antes de levar as doações aos destinatários na área flagelada, desviou parte da carga. Ou os oportunistas que oferecem água à venda por preços multiplicados e casas para alugar pelo dobro do preço de mercado. Se fosse crime contra o Estado, a história seria outra. Como é crime contra a sociedade, fica por isso mesmo. Até o oportunismo político de alguns deve ser situado na mesma lógica da predação contra os que foram vitimados pelos escorregamentos, enxurradas e desabamentos.
O saque surge do nada. A rapina de cargas de veículos acidentados é outra modalidade de sebaça, multidões repentinas carregando o que podem. Não se trata de ladrões profissionais. Trata-se de algo pior: da prontidão de pessoas comuns, que nunca sairiam de casa para assaltar alguém, mas o fazem simplesmente porque a oportunidade se apresenta. Isso envolve não só a prática de despojar alguém indefeso daquilo que lhe pertence, mas também a de se aproveitar de alguém em situação de desvantagem para aumentar preços e extorquir legalmente em nome da lei da oferta e da procura. Do especulador impiedoso ao saqueador, estamos em face da ação motivada pelo mesmo sistema de valores, os da lei do mais forte, em face da qual a civilização é uma quimera.
Essa prática tem entre nós raízes culturais profundas. Herdamos da Europa medieval o direito à sebaça, ao saque dos bens dos vencidos. Na história social e política brasileira temos vários episódios e ocorrências desse tipo nas chamadas lutas de famílias. O caso mais emblemático, ocorrido em Dianópolis, no norte do antigo Estado de Goiás, virou enredo de obra clássica da literatura, O Tronco, de Bernardo Élis. Também no cangaço, a sebaça se propunha como um direito do vencedor sobre o vencido. O grave, no caso do Rio, é que a vítima do desastre seja tratada por alguns como um vencido em guerra justa. Essa é a grande anomalia social.
Ainda menino, quando morava na roça, e fazia o curso primário no Grupo Escolar Pedro Taques, em Guaianases, na periferia de São Paulo, mais de uma vez vi multidões carneando nos pastos bois e vacas que haviam morrido por ingestão de ervas venenosas, o gado ervado, ou picados de cobra. Bastava que alguém visse um urubu solitário voando em círculos, bem alto, que as mulheres saíam de casa com facas e bacias em direção àquele ponto. Amontoavam-se ao redor do animal, numa pacífica divisão do trabalho, para abri-lo e cortar os pedaços do que era a única carne que comiam de vez em quando. Deixavam para as aves de rapina apenas as vísceras,por serem, diziam, as partes em que o veneno se localizava. Nunca o dono do gado se opôs a essa prática.
O saque das mercadorias de caminhões acidentados, mesmo dentro das cidades, reproduz, revigora e amplia esse direito popular e antigo. O dono perde o direito de propriedade em relação aos seus bens a partir do acidente. São muitas as evidências desse primitivismo também em relação aos mortos, como a indicar que o direito aos bens de alguém cessa quando esse alguém morre, os bens caindo em comisso como uma espécie de bem público que entra no circuito de reapropriação privada. Em outras sociedades, essas formas primitivas de direito foram banidas e superadas pelas revoluções sociais e políticas. Aqui, historicamente as coisas foram diversas. A superficialidade das mudanças sociais sempre facilitou a agregação do direito velho ao direito novo, traço profundo da nossa cultura política da conciliação. Os saques e a especulação econômica contra as vítimas sobreviventes do desastre ambiental na região serrana do Rio de Janeiro nos mostra a vitalidade entre nós do direito do abutre a se nutrir da carniça das tragédias sociais.
José de Souza Martins, Professor Emérito da Universidade de São Paulo, é autor de a Sociabilidade do Homem Simples (Contexto).
FONTE: O ESTADO DE SÃO PAULO/ALIÁS
Parece que este país se renova em suas tragédias. Alguém já disse isso mais de uma vez. Este povo, na maioria, aparentemente recolhido ao mesmismo do cotidiano, que só sai da toca nos carnavais para pôr a máscara do que não é, nas tragédias se revela de fato. Tradições antigas de pertencimento e solidariedade ganham vida nessas horas, põem-nos para fora de nossos limites e de nossas contenções. Vimos isso nesses dias da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro. Mesmo pessoas golpeadas profundamente pela dor da perda de gente muito próxima, que nem haviam enterrado seus mortos, já estavam ajudando a resgatar outros e salvar vidas.
Mas do fundo de nossas tradições vem também um dos nossos mais deploráveis traços culturais. Em primeiro lugar, sem dúvida o saque do que restava das casas das vítimas, com gente até se oferecendo como voluntária para ajudar apenas para ter a oportunidade de saquear. Maculando a generosa dedicação de outros. Ou o roubo, pura e simples, como fez aquele funcionário da Uerj que, antes de levar as doações aos destinatários na área flagelada, desviou parte da carga. Ou os oportunistas que oferecem água à venda por preços multiplicados e casas para alugar pelo dobro do preço de mercado. Se fosse crime contra o Estado, a história seria outra. Como é crime contra a sociedade, fica por isso mesmo. Até o oportunismo político de alguns deve ser situado na mesma lógica da predação contra os que foram vitimados pelos escorregamentos, enxurradas e desabamentos.
O saque surge do nada. A rapina de cargas de veículos acidentados é outra modalidade de sebaça, multidões repentinas carregando o que podem. Não se trata de ladrões profissionais. Trata-se de algo pior: da prontidão de pessoas comuns, que nunca sairiam de casa para assaltar alguém, mas o fazem simplesmente porque a oportunidade se apresenta. Isso envolve não só a prática de despojar alguém indefeso daquilo que lhe pertence, mas também a de se aproveitar de alguém em situação de desvantagem para aumentar preços e extorquir legalmente em nome da lei da oferta e da procura. Do especulador impiedoso ao saqueador, estamos em face da ação motivada pelo mesmo sistema de valores, os da lei do mais forte, em face da qual a civilização é uma quimera.
Essa prática tem entre nós raízes culturais profundas. Herdamos da Europa medieval o direito à sebaça, ao saque dos bens dos vencidos. Na história social e política brasileira temos vários episódios e ocorrências desse tipo nas chamadas lutas de famílias. O caso mais emblemático, ocorrido em Dianópolis, no norte do antigo Estado de Goiás, virou enredo de obra clássica da literatura, O Tronco, de Bernardo Élis. Também no cangaço, a sebaça se propunha como um direito do vencedor sobre o vencido. O grave, no caso do Rio, é que a vítima do desastre seja tratada por alguns como um vencido em guerra justa. Essa é a grande anomalia social.
Ainda menino, quando morava na roça, e fazia o curso primário no Grupo Escolar Pedro Taques, em Guaianases, na periferia de São Paulo, mais de uma vez vi multidões carneando nos pastos bois e vacas que haviam morrido por ingestão de ervas venenosas, o gado ervado, ou picados de cobra. Bastava que alguém visse um urubu solitário voando em círculos, bem alto, que as mulheres saíam de casa com facas e bacias em direção àquele ponto. Amontoavam-se ao redor do animal, numa pacífica divisão do trabalho, para abri-lo e cortar os pedaços do que era a única carne que comiam de vez em quando. Deixavam para as aves de rapina apenas as vísceras,por serem, diziam, as partes em que o veneno se localizava. Nunca o dono do gado se opôs a essa prática.
O saque das mercadorias de caminhões acidentados, mesmo dentro das cidades, reproduz, revigora e amplia esse direito popular e antigo. O dono perde o direito de propriedade em relação aos seus bens a partir do acidente. São muitas as evidências desse primitivismo também em relação aos mortos, como a indicar que o direito aos bens de alguém cessa quando esse alguém morre, os bens caindo em comisso como uma espécie de bem público que entra no circuito de reapropriação privada. Em outras sociedades, essas formas primitivas de direito foram banidas e superadas pelas revoluções sociais e políticas. Aqui, historicamente as coisas foram diversas. A superficialidade das mudanças sociais sempre facilitou a agregação do direito velho ao direito novo, traço profundo da nossa cultura política da conciliação. Os saques e a especulação econômica contra as vítimas sobreviventes do desastre ambiental na região serrana do Rio de Janeiro nos mostra a vitalidade entre nós do direito do abutre a se nutrir da carniça das tragédias sociais.
José de Souza Martins, Professor Emérito da Universidade de São Paulo, é autor de a Sociabilidade do Homem Simples (Contexto).
FONTE: O ESTADO DE SÃO PAULO/ALIÁS
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