domingo, 23 de janeiro de 2011

Neorrepublicanismo, tolerância e diálogo:: Ivo Coser

Phillip Pettit. A teoria da liberdade. Trad. Renato Sérgio Pubo Maciel. Coordenação e supervisão Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 272p.

Abordar o pensamento neorrepublicano implica analisar um pensamento em movimento. Em outras palavras, diferentemente de autores cujas obras já estão fechadas, às quais se sobrepõem interpretações sobre ideias já conhecidas, os principais autores do pensamento neorrepublicano estão produzindo. Portanto, formulações consideradas chaves podem ser reformuladas em razão de novos argumentos.

O pensamento neorrepublicano emerge a partir de duas linhas de pesquisa. Uma se desenvolve no campo da História das Ideias, cujo principal expoente é Quentin Skinner, que tem sua obra bastante difundida no Brasil. A segunda envolve a Teoria Política, cujo principal expoente é Phillip Pettit. O principal esforço teórico em delinear esta corrente partiu de Phillip Pettit, e, foi o seu trabalho que forneceu elementos chaves para as pesquisas de Quentin Skinner no campo da História do Pensamento Político. Em 1997, Philip Pettit publicou Republicanism [1]. Esta obra desencadeou uma série de trabalhos que retomavam a tradição republicana em novas bases. O termo “republicanismo” invadiu o vocabulário acadêmico e, mesmo, o do debate político mais amplo. Hoje tornou-se comum lermos ou ouvirmos o termo “republicanismo” nos jornais, revistas e debates parlamentares. A publicação em 2001 de Theory of Freedom possibilita redefinições relevantes tanto no seu aspecto teórico como nas pesquisas em história do pensamento político.

Na sua obra hoje já clássica Republicanism, Pettit apresentou como um dos seus aspectos distintivos para com o pensamento liberal o conceito de liberdade como não dominação. Esta definição enfatiza a ideia de que o cidadão é livre quando não sofre uma interferência arbitrária. Um sujeito afeta arbitrariamente outro quando constrange as escolhas que este realizaria, através de uma interferência direta ou velada. A ideia de arbitrariedade está associada à negação de que o outro sujeito deva possuir autonomia para realizar suas escolhas e que estas devam ser levadas em conta na formulação das alternativas. O pensamento republicano estabelece esta distinção a partir do principal perigo a ser evitado: a dominação. A dominação seria caracterizada por uma relação entre senhor/amo e servo. Nesta o senhor pode intervir de maneira arbitrária nas escolhas do dominado, sem que tenha que considerar as opiniões da pessoa afetada. Pettit enfatiza que a dominação pode ocorrer sem que seja necessária a ocorrência da intervenção, pois a ameaça e o sentimento de temor conduzem o sujeito a restringir suas escolhas, buscando satisfazer aquele que pode, sem a necessidade de ponderar os interesses do outro, forçá-lo a um dado comportamento [2].

Para os republicanos pode-se permitir a interferência de uma instituição com a condição de que esta promova os interesses dos cidadãos e a realize de acordo com critérios compartilhados entre os cidadãos [3]. Os instrumentos de um Estado democrático são meios para promover a liberdade dos cidadãos e não fins em si mesmos. A liberdade do cidadão é distinta da participação no governo a qual é entendida como um meio para assegurar a primeira.

O pensamento neorepublicano construiu intencionalmente sua definição em oposição à concepção teórica de Isaiah Berlin, que foi talvez o mais importante teórico político liberal do pós-segunda guerra mundial. Hoje, é clássica sua distinção entre os dois conceitos de liberdade, a liberdade positiva e a negativa. Nesta formulação, o polo principal deste conceito reside na liberdade negativa, ocorrendo uma equação política, na qual quanto maior a interferência menor o espaço da liberdade. Em outras palavras, o silêncio da interferência é o campo da liberdade.

Os neorrepublicanos avaliam positivamente a possibilidade de intervenção como um reforço para o exercício da liberdade. A necessidade de intervenção decorre da existência de poderes assimétricos na sociedade, que afetariam a autonomia do cidadão — poderes tais como o de patrões sobre trabalhadores ou o de maridos sobre as esposas. Essa intervenção não representaria uma perda de liberdade.

Neste sentido, o pensamento republicano estabelece dois aspectos para evitar a arbitrariedade: a importância dos procedimentos formais e a ausência de fins últimos na condução da interferência. A formulação do pensamento neorrepublicano esteve assentada em aspectos formais. Tal procedimento foi movido pela ideia de que deveria ser afastada qualquer sombra de um conteúdo substantivo para o exercício da liberdade. Quaisquer metas, tais como liberdade do povo, liberdade como participação política, seriam vistos como um retorno ao conceito antigo de liberdade. Ao cidadão não lhe seria demandado nenhum conteúdo para a sua ação, mas simplesmente o respeito às regras formais que sustentariam o espaço de liberdade, o qual seria preenchido por cada cidadão livremente.

Esta formulação foi modificada recentemente. A publicação do livro Theory of Freedom (2001) apontou para um deslocamento importante na sua argumentação. Neste trabalho a ênfase na formulação do conceito de liberdade se desloca dos aspectos formais do Estado e da sua organização para os pré-requisitos de que o cidadão deve dispor para exercer essa liberdade. A ideia da liberdade como não dominação asseguraria a autonomia do cidadão, entretanto esta deve estar diretamente associada ao controle discursivo. O aspecto principal desta ideia consiste na capacidade relacional com outros cidadãos. Num sistema republicano, o cidadão deve ser capaz de dialogar amistosamente e de agir com outros cidadãos, que, porventura, possam postular valores distintos [4].

Dessa maneira emerge no pensamento neorrepublicano o tema do diálogo. Um tema importante que foi trabalhado principalmente por Hannah Arendt e, sob influência, desta, mas em outra direção, por Jürgen Habermas.

A ideia do diálogo, formulada por Hannah Arendt, emerge como um passo além da tolerância. A ideia de tolerância desempenha um papel importante na reflexão política ocidental. Os cidadãos, possuindo crenças e valores distintos, de maneira a evitar um conflito que colocaria em risco a vida em comum, aceitam o convívio em bases de tolerância às diferenças. Entretanto, a ideia de diálogo envolve um aspecto distinto. A esfera da política é permeada pela capacidade dos cidadãos em sairem da sua visão do mundo e serem capazes de compreender o ponto de vista dos demais, ampliando seu conhecimento dos assuntos públicos. O agir em conjunto, característico da política, somente pode ocorrer através deste deslocamento, o qual requer mais do que a mera tolerância, mas a incorporação dos valores dos outros cidadãos num novo patamar.

A formulação de Hannah Arendt pode oferecer elementos novos para a teoria política neorrepublicana. Conforme os neorrepublicanos enfatizaram, participar nos assuntos públicos era um meio para proteger sua esfera de não dominação; com a introdução do tema do diálogo este aspecto ganha uma nova dimensão. O cidadão participa dos assuntos públicos não apenas para dispor de uma esfera de autonomia, mas para ampliar seu conhecimento e sua ação na esfera pública. Somente através diálogo o cidadão incorpora a visão de mundo dos demais, ganhando uma mirada que jamais obteria caso permanecesse preso aos seus interesses. A ideia da liberdade como não dominação passa a a ser um primeiro passo, o qual requer, em seguida, que o cidadão disponha da capacidade de dialogar amistosamente com outros cidadãos, portadores de valores distintos, implicando a incorporação destes na sua nova opinião.

A leitura de A teoria da liberdade, em que pese sua linguagem teórica, permite ao leitor o acesso a um aspecto novo nesta importante corrente do debate político contemporâneo.

Ivo Coser é cientista político e autor de Visconde do Uruguai. Centralização e federalismo no Brasil 1823-1866 (Belo Horizonte, 2008).

Notas

[1] Republicanism. A Theory of Freedom and Government. Oxford, 1997.

[2] Pettit, 1997, cap. 1.

[3] Pettit, 1997.

[4] Pettit, 2001, cap. 4 e 6 .

FONTE: GRAMSCI E O BRASIL

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