Aqui, a tendência é ver o criminoso como vítima, resquício de um imaginário criado durante a ditadura. Falta estender essa abordagem a toda a sociedade
A manifestação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em entrevista ao Estado, contrária à redução da maioridade penal, apenas indica que o governo brasileiro não tem resposta para a crescente e disseminada violência que aterroriza o País. É compreensível, na retórica jurídica do professor de direito de uma universidade católica, a afirmação de valores da civilização contra o clamor repressivo dos que têm medo. Mas a entrevista não o é quando indica que a política do governo, de que ele é membro, se limita a resistir à alteração penal que muitos pretendem. O ministro teme que reduzir a maioridade penal e ampliar o tempo de permanência na cadeia de jovens assassinos os torne criminosos porque a cadeia é uma escola de crime. Mas, eles já são criminosos de crimes violentos! O que mais podem aprender os autores de crimes recentes que se situam no âmbito da pura barbárie? O que não quer dizer que a extensão da pena para os criminosos violentos que sejam menores de idade vá resolver o problema grave das causas da criminalidade juvenil.
Vários dos autores de crimes hediondos, do noticiário recente e remoto, são indivíduos, menores aí incluídos, que não frequentaram a escola de crimes que a cadeia seria. Os crimes foram aprendidos e maquinados fora da prisão, em casa, na vizinhança, nas ruas. Os que querem a redução da maioridade penal querem mais tempo de cadeia para autores de crimes medonhos, crimes inexplicáveis, como o assassinato da dentista de São Bernardo do Campo, queimada viva. Ou, nos mesmos dias, a pouco noticiada violência sofrida por uma idosa e sua filha, na roça no interior da Bahia, com estupro e assassinato de uma delas, com um tiro, depois de lhe terem enfiado uma escopeta na vagina. Ou o caso do assassinato dos jovens Liana Friedenbach e Felipe Caffé, torturados (ela estuprada) e assassinados bárbara e cruelmente na zona rural de Embu Guaçu, há dez anos, por um grupo de que fazia parte um menor de idade.
A retórica jurídica pode convencer na sala de aula, mas não convence nem tranquiliza quem vive cotidianamente situações de risco na rua e até em casa. Ao c0ntrário, só aumenta a certeza de que o Estado brasileiro não sabe o que fazer. Nosso liberalismo livresco não gerou convicções nem se enraizou na cultura popular. Liberdade, aqui, acaba sendo entendida como permissividade na concepção de que tudo é lícito desde que se escape. Aqui, a liberdade não é propriamente um direito dos cidadãos, mas um álibi dos espertos. A liberdade ingenuamente concebida apenas cria inimigos da liberdade, na disseminação da convicção de que o direito é um instrumento do crime. O mesmo vale para os chamados direitos humanos, justos, porém mal justificados e pior compreendidos. A liberdade é, sem dúvida, um direito e um bem, que, no entanto, se nutre e justifica pelo recíproco reconhecimento da liberdade e da vida alheias como um direito e um bem do outro. É um bem social e não apenas individual. A liberdade e os direitos humanos são aquisições cotidianas, pelas quais se paga reconhecendo os direitos humanos do outro. Os inadimplentes ficam em débito com a sociedade, cabendo à Justiça cobrar a dívida em nome do credor, que é a sociedade desarmada.
O sistema judicial liberalizante e benevolente, na cultura do medo, em vez de assegurar justiça estimula a iniquidade do justiçamento popular. A sociedade retoma pela violência o direito originário a justiça quando as instituições falham no desempenho do que é mera representação e condicional delegação de responsabilidades. O Brasil está entre os países que mais lincham no mundo. Temos de quatro a cinco linchamentos e tentativas de linchamento por semana, nas várias regiões do País. Linchamento é também barbárie e, no fundo, expressão da mesma cultura dos crimes que os linchadores querem vingar. Pesquiso essa modalidade de violência coletiva há anos. Ela é sempre manifestação de descrença na Justiça. Reveste-se, na maioria dos casos, da mesma crueldade que caracteriza os crimes que por meio dela a sociedade da rua pretende punir. Nos casos extremos, o linchamento, além da mutilação de sua vítima, culmina com sua queima ainda viva. A matriz da cultura do crime é a mesma da punição do crime. Ou seja, estamos em face de um problema estrutural da sociedade, um "defeito" de funcionamento, que sob diferentes formas de manifestação, se apresenta como expressão dos "maus" e também dos "bons".
Em outros países, tem cabido geralmente às universidades a realização de pesquisas sociológicas e antropológicas sobre fatores e causas superficiais e profundas da criminalidade e sobre os meios sociais a serem mobilizados para combatê-la. Aqui, a tendência é estudar o criminoso como vítima, como titular de direito, resquício de um imaginário criado durante a ditadura militar. Falta estudar mais amplamente a sociedade como vítima, titular de cidadania e também credora de direitos sociais e dos direitos humanos, sobretudo o direito à vida.
* José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de A sociedade vista do abismo (Vozes)
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo
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