- O Globo
• Seria bom substituir a cultura do confronto pela prática da conversa e a busca do entendimento
Sempre me impressionou a mensagem de Natal que os anjos trouxeram ao presépio. Além de glorificar Deus nas alturas, desejavam paz na terra aos homens de boa vontade. Uma clara restrição — os de má vontade ficavam de fora, que se guerreassem à vontade. Nesta data festiva, podemos nos lembrar disso e ter um pouquinho de boa vontade geral. Faz bem ao país. Pode ajudar na paz e na harmonia. Até mesmo porque, como lembrou a ministra Cármen Lúcia, a sociedade não pode correr o risco de descrer do Estado: “Ou a democracia ou a guerra”.
Seria bom substituir a cultura do confronto pela prática da conversa e a busca do entendimento. Buscar fatos e dados, tanto na memória histórica quanto na experiência alheia. Como são as coisas em outros países democráticos? Por que são diferentes? Com que efeito? Reflexões assim despertadas podem ajudar a entender melhor a reforma da Previdência, a do ensino, a flexibilização de leis trabalhistas e tanto mais. Disposição para aprender pode levar a saídas. Neste ano que se encerra, tivemos a oportunidade de aprender lições importantes. Como constatar que pressão pode funcionar. Ou que a irresponsabilidade tem consequências — seja no campo fiscal, seja na estupidez de querer voar com pouco combustível.
Nos últimos dias, um vazamento de delação da Odebrecht nos revoltou e exacerbou a má vontade geral, a juntar todas as revelações, como farinha do mesmo saco. Talvez não seja sábio compactuar com essa ideia de que é todo mundo igual e ninguém presta. Ou que toda doação para campanha eleitoral é sempre criminosa, sendo melhor que os financiamentos sejam públicos, por meio de um fundo partidário que cresce sem parar a cada novo orçamento e será distribuído pelos que controlam cada partido. Talvez seja preferível uma reforma política a baratear campanhas e fiscalizar financiamentos privados, exigindo transparência e punindo severamente qualquer irregularidade, sem possibilidade de anistias fajutas. Até lá, é melhor examinar de perto o que se relata e delata.
Até há pouco, doação de empresa para campanha era legal. Para candidatos individuais ou para partidos. Nesse caso, alguém era encarregado de receber e encaminhar à conta oficial. Mas tinha de ser declarado ao TSE. Então é só cotejar. Foi doação declarada? Nenhum problema. Mas se o que se delata como doado não bate com o que se declarou ao tribunal, há que investigar. Se o delator mente, é crime a ser castigado (infâmia, calúnia, difamação, sabe-se lá). Se há indícios de recebimento, é outro caso. No mínimo, recai em evasão fiscal e crime eleitoral. Para quem doou por fora, é sinal de que pretendia favores e queria corromper. Para quem recebeu, há pena de multa e risco de cassação.
Outro caso é de quem recebeu fora de campanha. Nada justifica, é preciso apurar com rigor. Tudo indica compra de votos no Congresso. Ou troca de favores. Ou tráfico de influência. O que se deu em troca? Projetos beneficiando quem pagava? A inserção de jabutis (que não sobem em árvore) nas forquilhas de medidas provisórias?
Pelo que surge nos primeiros relatos, muitos casos de pagamento se destinavam a comprar decisões legislativas e apoio para alguma MP especialmente concebida para beneficiar a empresa que pagava adiantado. Torna-se então imprescindível examinar a origem dessa MP. E aí se chega ao Palácio do Planalto, de onde vêm todas elas. Não dá para querer limpar a área sem chegar ao Executivo, o ninho em que foram concebidas e chocadas as MPs que beneficiavam as empreiteiras corruptoras. Fica inevitável examinar as digitais presidenciais bem como de ministros e altos assessores presidenciais. Só após redigidas é que elas batiam asas em direção ao Congresso. Já que essas medidas valiam tanto, como engolir a hipótese de que brotavam por geração espontânea, em coincidente identidade de propósitos entre a empreiteira e o Planalto? A corrupção só se exerceria na reta final? Não sejamos ingênuos, algo havemos de aprender quando pensamos. Se pensarmos, claro.
Em algum lugar sem mancha, reúnem-se às gargalhadas o Delegado Espinosa, o criminalista Mandrake, os detetives Hercule Poirot, Sam Spade, Philp Marlowe e Sherlock Holmes, e mais Arsene Lupin, Miss Marple, o Comissário Maigret, o inspetor Dalgliesh e todos os investigadores famosos dos romances policiais. Rolam de rir ao constatar que um país inteiro se contenta com essa hipótese ridícula, que lhe é servida diariamente a conta-gotas, até vencer pelo cansaço e se transformar em indiferença. Supõe imaginar que centenas de criminosos toparam cometer o mesmo crime de se vender, no mesmo modelo, no mesmo governo, para apoiar medidas que brotavam do mesmo nada, servindo a interesses muito específicos, vindas da mesma origem e criadas a partir de alguém que não tinha nada a ver com esse crime, mas ia tendo ideias em série, por iluminação súbita. Não é coincidência demais? Ou confusão de boa vontade com cegueira? A que projeto servia esse crime?
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Ana Maria Machado é escritora
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