- O Estado de S.Paulo
Temos aí a síntese de temas examinados pela sociologia da forma estatal
Em editorial recente o Estado discutiu um ato do Supremo Tribunal Federal (STF) que ainda não foi devidamente discutido. Desde o título temos materiais para a diagnose do sistema estatal brasileiro: As celebridades do STF (9/6, A3). Após citar o aluguel de sala exclusiva para espera, embarque e desembarque dos magistrados no aeroporto brasiliense (ao custo de reais aos milhares), o autor do texto não mastiga palavras: “Agora, o STF tem não apenas uma área reservada para seus ministros, mas há um procedimento de embarque exclusivo. Acham melhor não se misturar com o povo. Contato com o populacho, só por intermédio das ondas esterelizadoras da televisão e do rádio oficiais”.
Temos aí a síntese de temas examinados pela sociologia da forma estatal. Desde a modernidade notamos um esforço para pensar o desempenho dos que operam o Estado em cenas trágicas ou bufas. Um livro que no Brasil teve pouco sucesso de venda expõe a lógica de quem manipula instituições e representa papéis diante das massas boquiabertas. Refiro-me ao volume de Richard Sennet O Declínio do Homem Público. Hoje os indivíduos, grupos, corporações desejam manter uma existência “íntima” no mesmo átimo em que brilham diante dos olhos populares. Impossível manter a contradição durante longo tempo. Logo, são ordenadas medidas para salvar a própria intimidade segundo a força econômica, política, social de cada setor. Celebridades que só atingem fama graças aos admiradores, paradoxalmente, fogem dos paparazzi que lhes dão renomada.
Volto ao texto do Estado: os juízes do STF gostam de aparecer nas telas, revistas, jornais. E são conhecidos por multidões que os admiram ou detestam. E tudo fazem para ter sua face lembrada. Entreveros no plenário ajudam. Como no telecatch examinado por Roland Barthes (Mitologias), temos no STF lutadores. Uns representam o Bem e outros, o absoluto Mal. A perversão e a bondade são reversíveis: os insultos voltam como bumerangues, fazem rir do herói, ontem trágico. Num processo o juiz desempenha o bom moço, mas noutro é execrado pelos pares ou pela plateia.
Célebres, eles querem guardar a condição de indivíduos privados. O contato com o populacho, na saborosa frase do jornal, deve passar pelas “ondas esterilizadoras”. Para resolver a situação penosa (a dialética entre a pessoa e o papel na cena pública) eles apelam para um truque antigo em regimes nada democráticos como o nosso. A presidente do STF, ao tomar posse do cargo, ousou falar em “Sua Excelência, o povo”. Estaria certa caso no Brasil tivesse vigor a soberania popular. Mas o espaço íntimo que ela concedeu a si mesma e aos pares desmente sua arenga supostamente democrática. A sala VIP é paga pelo aludido soberano, para dele afastar os que deveriam servi-lo.
Boa parte dos nossos juízes pensa e opera como os estamentos “superiores” do absolutismo. Eles se imaginam sacerdotes de um saber do qual detêm a propriedade. E a tudo acodem e decidem de modo consequente. Certa feita o rei francês pediu aos Estados um aumento de impostos. O Terceiro – a burguesia– recusou votar o acréscimo antes de examinar os cofres reais. Voto do clero: “As finanças do reino são como o Santíssimo Sacramento. Só podem delas ter a vista quem foi ordenado divinamente”. Não por acaso os nossos julgadores, ao falar dos que pagam altíssimos impostos, articulam a voz com desprezo: “São críticas de leigos”. E acabou a conversa: apenas os ungidos podem ter acesso aos arcana imperii.
Outro resquício de poder sacrossanto: nossos magistrados o exibem no uso de privilégios. A sala VIP de Brasília é uma delas, o auxílio-moradia, outra assumida como direito. E abrem-se as portas para outras e outras. Veículos de luxo, motoristas, gasolina, impostos viários, tudo segue para a conta do “soberano” invocado pela presidente do STF. Sempre que examino o Antigo Regime, noto dois pontos na sua persistência brasileira. O primeiro diz respeito às roupas. Sob domínio real, nobres e clero tinham exclusividade de cores, tecidos e cortes. Quem observa os retratos dos burgueses, nota o preto e branco por eles ostentado. Não era o rigor moralista contra o luxo, mas proibição, porque as cores eram privilégios. No Rio de Janeiro o príncipe João (depois VI) ainda fala do poviléu como “gente ordinária de vestes”. Quando a toga desce sobre os ombros de nossos juízes, eles deixam de ser “gente ordinária de vestes”, entram para o panteão, longe dos meros leigos. Daí a sua busca de espaços sagrados, onde só eles podem pisar, como a sala do aeroporto brasiliense.
Mesmo com privilégios dados ao clero e aos nobres no Antigo Regime, nunca se ouviu dizer que o rei pagasse a carruagem do cardeal ou duque. Aqui, o “soberano” garante as viaturas de vereadores, nos municípios mais carentes de serviços públicos, a locomoção de prefeitos, deputados, senadores e... juízes. Uma conta conservadora eleva os gastos com tais regalias aos bilhões, que poderiam ser postos na educação, saúde, segurança.
Os ministros do STF a ele se referem em tom sempre elogioso, como se a infalibilidade garantisse o futuro e o presente, numa instituição cujo pretérito seria glorioso. A pesquisa histórica desmonta semelhante wishful thinking. No momento em que a Corte permite a censura ao jornal O Estado de S. Paulo, no caso da Operação Boi Barrica, lemos com muito proveito o livro de Felipe Recondo Tanques e Togas, o STF e a Ditadura Militar (SP. Cia das Letras, 2018). Nele fica bem claro o epíteto do STF : “tribunal político”. Semelhante desolação só pode ser abolida se a escolha dos juízes for modificada, recrutando-se pessoas afeitas à democracia e aos julgamentos desde a primeira instância, avessas aos tratos de gabinetes e corredores do Executivo ou Legislativo. Ou quando as urnas escolherem juízes, com recall para eles e todos os que dirigem o Estado brasileiro.
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*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)
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