As lições do movimento de 1968 que chegaram até o Brasil dos dias atuais
Gabriel Cariello | O Globo
Em 2013, os jovens retornaram às ruas, como nos anos 1960. Mas agora o ativismo tem que encarar o desencanto. Os estudantes tomaram as ruas. Os operários pararam as máquinas. Os negros cerraram os punhos, e as mulheres queimaram os sutiãs. Revistos com o benefício do tempo, gestos de antes, durante e depois de 1968 hoje transformam aquele ano no ponto de convergência do ativismo no século XX — um século que oscilou entre o autoritarismo e a rebeldia. Cinquenta anos depois, algumas lições daquele momento histórico ainda reverberam, enquanto a ação ativista busca novas estratégias para não se pulverizar na era do desencanto.
Pensar o engajamento político no mundo em 2018 significa esbarrar em Brexit e Trump, palavras que não existiam no vocabulário ativista no início da década, quando Primavera Árabe e Occupy Wall Street eram sinônimos de esperança. No Brasil, mal nos acostumamos a falar das “Jornadas de Junho de 2013”. Já no ano seguinte, a Lava-Jato surgiu.
O mundo parecia experimentar outra vez, a primeira desde 1968, fagulhas de uma “combustão espontânea”, como o escritor Mark Kurlansky chamou a sucessão de protestos em diferentes nações.
— Os movimentos de 1968 foram eclodindo em vários países, sem ter necessariamente relação uns com os outros. O sentimento geral era o de luta pela liberdade, fosse política, social ou individual — explica Regina Zappa, autora, com Ernesto Soto, de “1968: eles só queriam mudar o mundo”.
O protagonismo foi dos jovens. Dos subúrbios de Paris às ruas de Praga, nas marchas de Washington e nas passeatas da Cinelândia, a juventude contestava as estruturas que dominavam suas vidas, cotidianos e relações familiares, Décadas depois, os jovens voltaram às ruas. A partir de 2010, uma onda de protestos na Tunísia e no Egito foi o epicentro da Primavera Árabe, que se propagou. Levou jovens americanos a ocupar o centro do sistema financeiro internacional. Provocou confrontos violentos entre policiais e manifestantes na Turquia. E chegou ao Brasil em 2013, com os movimentos contra o aumento nas tarifas de transporte.
Após cinco anos, no entanto, paira a sensação de que as denúncias de corrupção impediram que o engajamento político, para questões nacionais, se mantivesse nas ruas.
— Em tese, esse desencanto deveria ser um facilitador para aglutinar pessoas, por meio da indignação com a corrupção e com a incompetência. O que o transforma em elemento enfraquecedor é a sensação de que o sistema políticopartidário é muito forte, capaz de se autoproteger e neutralizar a renovação — avalia o jornalista Fernando Gabeira.
O documentarista João Moreira Salles, autor do filme “No intenso agora”, sobre os eventos de 1968 na França e na antiga Tchecoslováquia, pondera que as atuais mobilizações carregam desejos de recuperar valores perdidos pela sociedade.
— Tem algo de regressivo nos sonhos dos que ocupam as ruas no século XXI. São utopias de retrovisor, que projetam no futuro um passado do qual se está nostálgico. Na esquerda mais clássica, o do pleno emprego das economias fabris e produtivistas que não existem mais, e não voltarão a existir; na vertente mais anarquista, é o ideal das pequenas comunidades, do consumo local, do assembleísmo, de algum flerte com saberes pré-científicos, da vida fora do sistema. Difícil imaginar como isso pode responder às complexidades de um mundo sistematicamente interconectado — afirma o documentarista, por e-mail.
CONQUISTAS SOCIAIS SÃO LEGADO
O movimento de 1968 deixou legado. Movimentos de cunho social, como o feminismo e a luta identitária, costumam ser citados como exemplos de ativismo que se nutre do espírito daqueles jovens.
— Foram várias conquistas de comportamento, sociais e ganhos de liberdades individuais — diz Regina Zappa.
O diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI, Toni Reis, acredita que, depois dos atos de 2013, os movimentos sociais perceberam que o diálogo passou a ser uma estratégia mais eficiente.
— Eu fazia um ativismo hard e mudei. Hoje, sento com gente da extrema esquerda à extrema direita. Às vezes é preciso endurecer, mas não pode ser só ativismo emocional e com palavras de ordem.
Para João Moreira Salles, ainda não é possível determinar a amplitude da influência das Jornadas de Junho no país.
— Correndo por baixo da superfície, no tempo lento da História, coisas estão acontecendo, pequenas fissuras, quebras na rigidez, um rearranjo silencioso e invisível de forças que, mais à frente, aflorarão produzindo efeitos. Não é uma dinâmica que se possa controlar. Algo semelhante acontecerá no Brasil do pós-2013. Não voltaremos para o lugar onde estávamos.
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