- Nas entrelinhas | Correio Braziliense
“O AI-5, nas palavras do falecido senador Ernâni do Amaral Peixoto, um político conservador, foi “a morte da política”. Nem por isso, a nostalgia de Eduardo Bolsonaro deixa de ser perigosa”
Em A Mente Naufragada, o cientista político norte-americano Mark Lilla explica que o espírito reacionário difere muito do conservador. Trata-se de invocar o passado para nele viver sem transformações, o que é muito diferente da atitude do conservador, que tem o passado e suas tradições como referência para agir no presente e construir o futuro. Partindo da análise das ideias de três pensadores do século XX — Franz Rosenzweig, Eric Voegelin e Leo Strauss —, Lilla investiga a mente reacionária e conclui que naufragou, porque olha para os destroços de um passado que lhe parece ameaçado, e luta para salvá-lo, porque não sabe conviver com as mudanças. Ironicamente, porém, isso faz do reacionarismo um fenômeno “moderno” no mundo da globalização e do multiculturalismo.
Lilla nos ajuda a entender a diferença entre o pensamento conservador, mesmo de viés autoritário, e o pensamento reacionário. E é um autor muito oportuno, porque explica o caráter ideológico do movimento que o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro, se propõe a organizar no Brasil no rastro da eleição de seu pai. O clã Bolsonaro flerta com a ideias propagadas pelo escritor Olavo de Carvalho, radicado nos Estados Unidos, guru da extrema direita brasileira. Há uma diferença, sutil mas relevante, entre a declaração de Eduardo Bolsonaro a favor da reedição do AI-5 em caso de mobilizações de protestos semelhantes às do Chile e a do general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), de que seria preciso estudar a forma de fazer isso. Um defendeu a volta da ditadura pura e simples; o outro, embora igualmente autoritário, sabe que os tempos mudaram e a história só se repete como tragédia ou farsa. Diante da reação negativa, o parlamentar se retratou.
O Ato Institucional nº 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, foi um golpe de Estado dentro do golpe de 1964, que destituiu o presidente João Goulart. Foi o período de maior repressão da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou até dezembro de 1978, com poder de exceção para punir arbitrariamente os adversários como inimigos de Estado. O ano de 1968 havia sido marcado por manifestações estudantis em todo mundo. Eclodiram em Paris e logo chegaram ao Brasil. O lema “é proibido proibir” tinha mais a ver com as mudanças nos costumes, mas aqui se encaixou como uma luva na luta contra o regime militar.
O ambiente era de isolamento político dos militares. A Igreja atuava em defesa dos direitos humanos e as lideranças políticas cassadas pelo regime se uniam de forma, até então, inimaginável: Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, João Goulart, com apoio do líder comunista Luís Carlos Prestes, em 1967, haviam criado a Frente Ampla, cujas atividades foram suspensas pelo ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, em abril de 1968. O ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, exigia atestado de ideologia dos dirigentes sindicais. Mesmo assim, uma greve dos metalúrgicos de Osasco sinalizava que o movimento operário se incorporaria às mobilizações de massa de estudantes, intelectuais e artistas.
Morte da política
O ministro do Exército, Aurélio de Lira Tavares, exigia medidas mais enérgicas contra as “ideias subversivas”. Falava em “guerra revolucionária” liderada pelos comunistas, pois parte da esquerda se preparava para a “luta armada”. A gota d’água para a promulgação do AI-5 foi o pronunciamento do deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, na Câmara, nos dias 2 e 3 de setembro, lançando um apelo para que o povo não participasse dos desfiles militares do 7 de Setembro e para que as moças, “ardentes de liberdade”, se recusassem a sair com cadetes das escolas militares. O deputado Hermano Alves, do mesmo partido, criticara duramente o regime em artigos no antigo Correio da Manhã. Por exigência do ministro do Exército, Costa e Silva, o governo solicitou ao Congresso a cassação dos dois deputados.
No dia 12 de dezembro, a Câmara recusou, por uma diferença de 75 votos (e com a colaboração da própria Arena, partido do governo), o pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves. No dia seguinte, foi baixado o AI-5, que autorizava o presidente da República, sem apreciação judicial, decretar o recesso do Congresso Nacional; intervir em estados e municípios; cassar mandatos parlamentares; suspender, por 10 anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confisco de bens considerados ilícitos; e suspender a garantia do habeas corpus.
No mesmo dia, foi decretado o recesso do Congresso Nacional por tempo indeterminado, sendo reaberto somente em outubro de 1969, para referendar a escolha do general Emílio Garrastazu Médici para a Presidência da República.
Na sequência imediata do AI-5, foram cassados 11 deputados federais, entre eles Márcio Moreira Alves e Hermano Alves. As cassações prosseguiram em janeiro de 1969, atingindo não só parlamentares, mas até ministros do Supremo Tribunal Federal. A forte reação dos partidos políticos, inclusive o PSL, e da sociedade civil às declarações de Eduardo Bolsonaro, que foi aconselhado a se retratar pelo próprio pai, o presidente Jair Bolsonaro, têm esse lastro da história. O AI-5, nas palavras do falecido senador Ernâni do Amaral Peixoto, um político conservador, foi “a morte da política”. Nem por isso, a nostalgia de Eduardo Bolsonaro deixa de ser perigosa: um golpe militar no Brasil exigiria um banho de sangue e não teria apoio internacional. O general Augusto Heleno sabe disso.
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