O Estado de S. Paulo
Nossa diversidade rima com desigualdade e
com problemas que nunca são resolvidos
O diretor de teatro Jé Oliveira mora em São
Paulo, tem 37 anos e ensaia a peça Gota D’Água, de Chico Buarque, com um grupo
de atores negros. O nome artístico do poeta João Fialho Cordeiro da Silva, de
57 anos, é Miró da Muribeca. Em versos satíricos, ele descreve o cotidiano da
cidade onde vive, Recife, enquanto declama versos de seu poeta favorito, o
mineiro Carlos Drummond de Andrade. Maria dos Santos tem 79 anos, vive na Bahia
e descende de um sobrevivente da Guerra de Canudos. Ela se lembra de quando o
escritor peruano Mario Vargas Llosa entrevistou seu pai para o épico A
Guerra do Fim do Mundo.
Jé, Miró e Maria são personagens de um livro que mostra, como poucos, o Brasil da vida real: Viagem ao País do Futuro, da jornalista portuguesa Isabel Lucas. O Brasil não cabe numa única viagem, e a autora cruzou o Atlântico várias vezes para retratar os diversos países dentro de nosso país. Nesta semana, ela vai falar sobre sua obra no Folio, um equivalente português da Festa Literária de Paraty, numa mesa sobre o Brasil (da qual também participarei). Isabel Lucas é a entrevistada do minipodcast da semana.
Para navegar os diversos Brasis, a autora
não recorreu a cartas tradicionais. Seus mapas saíram da literatura brasileira.
O livro começa com a visita à terra descrita em Os Sertões, a obra-prima
que Euclides da Cunha desentranhou de uma série de reportagens para o Estadão.
“Parti dos livros, pois o Brasil está representado na obra de vários grandes
autores”, diz Isabel Lucas. Viagem ao País do Futuro se alimenta do
diálogo – e do choque – entre a realidade e obras literárias.
A autora se impressionou com a São Paulo
multicultural onde o diretor teatral Jé Oliveira se move – uma cidade que “é
como o mundo todo”, tal qual no verso de Caetano Veloso, com imigrantes de 196
países. Isabel Lucas também notou as dificuldades dos paulistanos em sair de suas
“conchas sociais”, para usar a expressão de Lygia Fagundes Telles em As
Meninas – o romance que guia seus passos por São Paulo.
Viagem ao País do Futuro tem um quê de
otimista e muito de perturbador. Sai-se da leitura impressionado com a
diversidade cultural do País, e também com a quantidade de boa literatura
produzida no afã de retratá-la. O que há de perturbador é que nossa diversidade
rima, na maior parte do tempo, com desigualdade – e também com problemas
persistentes que nunca são resolvidos.
Ao longo dos anos, mergulhos na realidade
nacional não renderam apenas boas reportagens e romances, mas também ciência. A
academia brasileira se debruça com afinco sobre os problemas brasileiros. Temos
um debate rico e estatísticas confiáveis em quase todas as áreas. Baseadas
nelas, criamos políticas públicas que, a partir da redemocratização, melhoraram
o País. Infelizmente, nos últimos governos, perdemos o rumo. O debate das
próximas eleições será central para que o recuperemos.
A neta de Maria dos Santos, Andreia, de 38
anos, estudou administração de empresas. Não conseguiu emprego em sua área e
vive de comprar e revender mercadorias em sua cidade. “Nadei, nadei, para
morrer na praia”, diz. “Mas meus filhos todos estudam. O mais velho, por
exemplo, quer fazer advocacia.”
Pelas páginas de Viagem ao País do Futuro
desfilam atores e testemunhas de um Brasil criativo e vibrante, e que vinha
melhorando. Não o suficiente, no entanto, para evitar que muitos brasileiros
ainda morram na praia.
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