domingo, 3 de abril de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Constituição está ao lado da Amazônia, não de Bolsonaro

O Globo

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido um dos alvos prediletos do bolsonarismo, que o acusa de abrir inquéritos arbitrários e de ingerência indevida nos demais Poderes. Há certa dose de razão nessas críticas, mas a claque de Bolsonaro precisa se conformar quando a Corte apenas exerce seu papel de guardiã da Constituição. É esse o caso do julgamento em curso sobre a política ambientalista do governo, iniciado na última quarta-feira, cujo desfecho deveria ser a confirmação de que o presidente agride a Constituição ao permitir a degradação da Floresta Amazônica, citada no parágrafo 4º do Artigo 225 como bioma a preservar, assim como a Serra do Mar, a Mata Atlântica e a Zona Costeira.

Chamado de “Pauta Verde”, o conjunto de sete ações impetradas por partidos políticos (Rede, PDT, PV, PT PSOL e PSB) cobra, entre outras medidas, a retomada dos programas que já reduziram a devastação na Amazônia no passado, pede que o Ibama volte a ser o protagonista da repressão aos transgressores ambientais no lugar das forças militares e que sejam reintegrados ao Fundo Nacional do Meio Ambiente representantes da sociedade civil. Quer, também, que o Fundo Amazônia, bancado por Noruega e Alemanha para financiar projetos autossustentáveis, seja reativado. Experiência bem-sucedida, o fundo foi paralisado por intervenção do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

Na quinta-feira, depois de o procurador-geral da República, Augusto Aras, ter feito uma defesa oblíqua do governo, a ministra Cármen Lúcia, relatora de seis dos processos (o sétimo está a cargo da ministra Rosa Weber) começou a ler seu longo voto sobre duas das ações. Já deixou claro que sua tendência é aceitar a cobrança feita para a retomada dos planos de contenção da devastação da Amazônia, além de determinar que o governo volte a cumprir o Plano Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), vinculado às metas estipuladas pelas Nações Unidas. Em outras palavras, ela defende o combate para valer ao desflorestamento na Amazônia, venha dos madeireiros predadores, dos pecuaristas do atraso ou dos garimpeiros ilegais.

Enquanto citava as estatísticas estarrecedoras que demonstram o recrudescimento da devastação na Amazônia desde a posse de Bolsonaro, Cármen Lúcia chamou a atenção para o dever constitucional do governo de proteger o meio ambiente. Alcunhou de “teatro ambiental” as ações da gestão bolsonarista, que não mobiliza organismos de Estado como deveria para enfrentar a destruição, nem sequer cumpre os orçamentos aprovados para preservação ambiental. Ocorre, na metáfora feliz da ministra, a “cupinização institucional”. Os agentes da destruição operam como térmites silenciosas não só ao devastar a floresta, mas sobretudo ao corroer as instituições.

É relevante no mundo todo que a Corte máxima do país onde ficam 60% da Amazônia, e sobre o qual pesam inúmeras denúncias de devastação do patrimônio natural, julgue o governo responsável pelos danos que causou. O julgamento do STF é acompanhado com atenção pelas redes globais que atuam no setor e pelas áreas diplomáticas. Espera-se um resultado incisivo condenando a cumplicidade de Bolsonaro com a destruição e recolocando a pauta ambiental brasileira no trilho. Novas manobras jurídicas do bolsonarismo para adiar a conclusão do julgamento seriam inaceitáveis.

Sem unidade de ideias, esquerda ganha espaço América Latina

O Globo

Num efeito dominó, a esquerda vem ganhando poder na América Latina desde a eleição de Andrés Manuel López Obrador no México, em 2018. De lá para cá, venceu na Argentina, Bolívia, Peru, Honduras e Chile. O movimento poderá continuar neste ano. No pleito marcado para maio na Colômbia, o favorito é de esquerda. Aqui no Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva lidera as pesquisas. Mas, embora todos estejam no campo identificado como progressista, há diferenças fundamentais entre os representantes dessa esquerda ascendente, como demonstram os casos chileno, peruano e colombiano.

Com 36 anos, o chileno Gabriel Boric encarna a chegada ao poder de uma nova geração. Crítico de ditaduras esquerdistas como Cuba e Venezuela, com um programa recheado de temas caros ao eleitorado jovem (feminismo e meio ambiente), diz estar aberto ao diálogo com um amplo espectro do eleitorado. Parece saber que, para atingir suas metas de elevar o bem-estar e combater a desigualdade, terá de proporcionar um ambiente propício ao crescimento. Em vários sentidos, Boric é prova do poder de renovação da democracia. Ainda é cedo para dizer se terá sucesso. Por enquanto, ele ainda está em lua de mel com o eleitorado.

O caso do peruano Pedro Castillo é oposto. Castillo está num inferno astral. Sua vitória em junho e, principalmente, seu governo são exemplos do nível da enfermidade que aflige a democracia peruana. O país teve cinco presidentes nos últimos cinco anos. Não houve nenhuma reviravolta econômica, revolta armada ou crise de segurança, nada que justificasse o entra e sai.

A crise peruana é política. Castillo, ex-professor rural e sindicalista sem experiência em cargo público, só piorou o que já estava ruim. A pasta das Relações Internacionais teve três ministros. A da Justiça, também. A Economia, dois. Faltando quatro meses para completar um ano no poder, Castillo enfrentou duas moções de vacância (impeachment por incapacidade moral para governar). A última foi na terça-feira passada. Por ora, garantiu sua cadeira. A promessa de campanha “No más pobres en un país rico” se perdeu com ideias tortas e incompetência.

Na Colômbia, Gustavo Petro, ex-guerrilheiro e ex-prefeito de Bogotá, sagrou-se vitorioso nas primárias realizadas no dia 13. Na disputa interna, foi aclamado como candidato da esquerda nas eleições presidenciais daqui a dois meses. Sua coalizão, o Pacto Histórico, apareceu como uma das principais forças do novo Congresso. Embora Petro não possa ser comparado ao caótico Castillo, tampouco representa uma nova esquerda. Critica Nicolás Maduro, mas tem um longo histórico de ligação com o chavismo.

Por aqui, as virtudes e os vícios dos governos de Lula são todos conhecidos. Seus planos para um terceiro mandato seguem sendo mistério. Mesmo favoritos, Petro e Lula ainda não têm vitória garantida. Nem se sabe se, caso vitoriosos, proporcionarão a seus países uma lua de mel ou um inferno astral.

Voo turbulento

Folha de S. Paulo

Gestão Doria teve feitos relevantes, que não se reverteram em apoio ao candidato

Ainda é cedo para avaliar se a pantomima encenada por João Doria foi suficiente para enquadrar o PSDB e sacramentar sua candidatura à Presidência da República. O agora ex-governador paulista, que ensaiou uma desistência para horas depois confirmar a postulação em clima de campanha, parece ter ampliado as desconfianças em torno de si e de suas reais condições.

O teatro de Doria é mais um capítulo de uma carreira política tão controversa quanto meteórica. Assim como em 2018, quando trocou a Prefeitura de São Paulo pelo Bandeirantes, o tucano deixa o governo para tentar alçar voo maior.

Doria venceu o pleito, apenas 15 meses após assumir a capital, ao surfar na onda bolsonarista. Não tardou para o "BolsoDoria", como batizou a esdrúxula parceria com o presidente Jair Bolsonaro (PL), tornar-se um pesadelo —uma aula de "realpolitik" para quem dizia não ser político, mas gestor.

Como governador, o tucano cercou-se de um secretariado técnico, manteve as finanças em ordem e assumiu protagonismo nacional ante o presidente ao defender e viabilizar um imunizante contra a Covid. Em meio às adversidades da crise sanitária, Doria bateu recorde em investimentos e estimulou a atividade econômica no estado.

Levantamento desta Folha avaliou 50 das principais promessas e metas. Quase metade não foi realizada (24%) ou está em fase inicial (20%). Outras 12% foram concluídas, 16% estão em estágio avançado e 28% seguem em andamento.

Sua gestão, contudo, trouxe avanços na educação (expansão do ensino integral), no meio ambiente (despoluição do rio Pinheiros) e na segurança pública (câmeras nos coletes de agentes, que reduziram a letalidade policial, e queda nos índices de criminalidade).

Entretanto máculas históricas do partido que comanda o estado mais rico da nação há 27 anos se repetiram sob Doria, como atrasos em obras do Metrô e a inconclusão do Rodoanel, símbolo de corrupção nos governos tucanos.

O empenho com as vacinas é trunfo inegável, mas ainda não cativou o eleitorado. A superexposição pode ter provocado cansaço, reforçando a imagem de inabilidade política e marketing excessivo.

Como se não bastassem parcos 2% das intenções de voto e rejeição de 30%, segundo o Datafolha, o ex-governador terá de lidar com um PSDB rachado. A começar por Eduardo Leite, derrotado nas prévias, mas que renunciou ao governo do Rio Grande do Sul e parece à vontade para uma virada de mesa articulada por Aécio Neves (MG).

No plano local, o PSDB corre o risco de perder a longa hegemonia em São Paulo —o legado da sigla será defendido por um neófito, o agora governador Rodrigo Garcia.

Simples e errado

Folha de S. Paulo

Incluir mais empresas no regime de tributação favorecida ampliaria distorções

Uma das tentações políticas mais recorrentes, em particular nos anos eleitorais, é ampliar isenções e benefícios tributários, em geral sem avaliação de custos e monitoramento de resultados.

Ganha força agora a ideia de elevar —mais uma vez— os limites de faturamento que permitem enquadrar empresas no Simples Nacional, regime que reúne uma coletânea de tributos em uma única cobrança de alíquotas favorecidas.

O tratamento diferenciado a pequenos e médios negócios é um ditame constitucional, encontradiço em vários países. A justificativa é incentivar a formalização e fomentar a produtividade.

Como é tradicional no Brasil, porém, um objetivo potencialmente correto se transmuta em privilégios injustificados, sem cuidado em quantificar os eventuais benefícios.

Desta vez, o lobby empresarial pretende elevar os limites do Simples de R$ 4,8 milhões para R$ 8,47 milhões anuais. Também seriam beneficiados os microempreendedores individuais (cujo enquadramento passaria de R$ 82 para R$ 142 mil) e as microempresas (de R$ 360 mil para R$ 847 mil).

Antes de qualquer novo aumento, cabe lembrar que a renúncia tributária com o regime já é elevada, tendo atingido R$ 83 bilhões em 2020 —cerca de 25% dos custos federais do gênero. Estudos apontam
que as faixas do programa estão acima dos padrões internacionais.

Em que pese a necessidade de algum benefício, especialistas apontam para o inconveniente de incentivar a pulverização do que poderia ser uma única empresa em várias diferentes, apenas para evitar o aumento de carga. O impacto na produtividade tende a ser negativo.

Além disso, muitos trabalhadores qualificados se organizam como pessoa jurídica para atividades que na verdade são serviços pessoais, pagando impostos muito inferiores aos dos assalariados.

Em outros países, por fim, define-se com mais critério a simplificação de regras do subsídio tributário, que tende a ser mais focado em atividades inovadoras.

É politicamente fácil o discurso de que se está favorecendo os pequenos empreendedores. A realidade é que hoje há um abuso do conceito —é aproveitado por quem não precisa dele, com custo excessivo e sem medição de impactos.

Cabe reduzir a burocracia, é claro, mas toda a miríade de benefícios fiscais e regimes especiais precisa ser reavaliada na tramitação de uma reforma tributária.

Catástrofe contratada

O Estado de S. Paulo

A vingarem as propostas e ideias de Lula e Bolsonaro, por ora favoritos na corrida presidencial, o Brasil tem um encontro marcado com desastre maior a partir de 2023

O futuro é extremamente desafiador para o Brasil, e a escolha do próximo presidente da República definirá quão prolongados serão os efeitos perniciosos de uma crise política, econômica, social e moral que há mais de três anos tem sido pintada com cores vivíssimas, diante dos olhos de todos. Das duas, uma: ou as forças genuinamente democráticas da sociedade superam veleidades e constroem uma alternativa responsável às forças do atraso que ora parecem triunfar, ou o País tem um encontro marcado com um desastre ainda maior do que o atual a partir de 2023.

Nenhuma eleição pode ser considerada mais importante do que outra, pois todas são cruciais ao tempo de sua realização. Mas é possível afirmar que os riscos envolvidos na escolha dos eleitores em 2022 são de magnitude poucas vezes vista na história recente do País. Há sérios obstáculos políticos e econômicos a serem superados, como já estiveram em jogo em tantos outros pleitos. Mas, a julgar pelo que propõem os dois pré-candidatos que lideram as pesquisas de intenção de voto no momento, o ex-presidente Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro, nada indica que caminhos serão abertos para que o Brasil saia desse lamaçal caso um dos dois seja o vencedor do pleito em outubro.

Tanto pior porque Lula e Bolsonaro são hábeis em açular seus apoiadores mais radicais e poluir o debate público com mentiras e distorções da realidade. Ao fazerem do ódio e da dissimulação instrumentos de ação política, tanto um como outro impedem a coesão social mínima em torno de um diálogo honesto e propositivo com vistas à reversão de nossas mazelas.

Cerca de 50 milhões de brasileiros convivem com a insegurança alimentar, ou seja, não têm renda suficiente para garantir comida no prato todos os dias. O número de desempregados – embora tenha recuado de 14,6% para 11,2% no trimestre encerrado em fevereiro, em comparação com o mesmo período no ano passado – ainda é assustador: são 12 milhões de cidadãos em idade economicamente ativa sem trabalho no País, de acordo com o IBGE. Economistas preveem que o porcentual de desocupação permanecerá no patamar de dois dígitos, no mínimo, até 2024. A inflação renitente corrói a renda dos que têm um emprego. Juros em ascensão freiam a capacidade de expansão da atividade econômica.

Na educação, o cenário é de terra arrasada. A cultura e a política externa foram transformadas pelo bolsonarismo em flancos de uma “guerra cultural” que seria apenas caricatura da estupidez de uns tresloucados caso não impingisse tantos danos ao País. Na seara ambiental, o Brasil foi da condição de interlocutor indispensável a pária internacional.

Diante desse quadro trevoso, é desalentador constatar que tudo o que Lula e Bolsonaro propõem só tende a agravar os problemas do País. É o exato oposto do que se espera de candidatos à Presidência da República.

O pouco que se conhece do programa econômico de Lula para um eventual terceiro mandato não apenas não resolve os problemas atuais, como os aprofunda. O papel aceita quase tudo. Lula pode escrever à vontade que “os melhores momentos do Brasil foram nos governos do PT”, mas não pode reescrever a História.

Bolsonaro pode dizer para seus apoiadores que o País “tem tudo” para crescer e se desenvolver, e que ele ainda não conseguiu fazer do Brasil a “pátria grande” porque “alguns poucos atrapalham” e deveriam “calar a boca” e deixá-lo trabalhar.

O fato é que nem Lula nem Bolsonaro têm projetos certos para atacar os problemas do País. Não propõem nada além de suas supostas virtudes pessoais em relação ao oponente. À frente da disputa pela Presidência, ao menos por ora, estão dois mitômanos que talvez só acreditem nas próprias patranhas pela força da repetição.

O País precisa de um líder moderno, atinado com a agenda política, social, econômica e ambiental do século 21. Um conciliador. Alguém que pense o futuro com responsabilidade, empatia e espírito público. Ou seja, alguém que ainda está por se fazer conhecido e, sobretudo, despertar a esperança dos brasileiros em um futuro melhor.

Desafio climático é pior para os pobres

O Estado de S. Paulo

O custo de adaptação à nova realidade ambiental é maior para os países pobres. Eles precisam de apoio mundial

Desastres naturais cada vez mais frequentes e custosos em termos materiais e humanos são um alerta para governos e sociedades. O mundo tem de se preparar para as consequências das mudanças climáticas, cada vez mais extensas. Todos os países, ricos ou pobres, precisam se adaptar a essas mudanças, senão todos terão de pagar pela omissão, advertem a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, e dois outros diretores, em texto divulgado pela instituição.

Haverá custos. E, como em outras situações, eles serão proporcionalmente maiores para os países que menos dispõem de recursos. A assimetria de respostas às mudanças climáticas decorrente das diferentes condições econômicas e sociais dos países pode comprometer o indispensável combate ao aquecimento global.

Trata-se de um problema mundial. Por isso, é necessário buscar mundialmente respostas para as mudanças climáticas, como advertem os autores do texto publicado pelo FMI. Os países pobres precisam de apoio global para se adaptar a essas mudanças, não apenas para que eles próprios estejam mais bem preparados, mas para que o mundo não venha a incorrer em custos talvez impagáveis no futuro.

Principal órgão internacional dedicado à defesa de políticas fiscais que assegurem o desenvolvimento equilibrado dos países que dele fazem parte, o FMI ficou conhecido também nas últimas décadas pelo socorro financeiro que forneceu a governos de países em dificuldades fiscais. A contrapartida era a adoção, pelos países socorridos, de programas rigorosos de ajuste financeiro. Seu foco continua sendo a política fiscal. Mas, agora, incluiu a adaptação às mudanças climáticas como elemento essencial do planejamento fiscal dos países-membros.

Em termos práticos, a adaptação para as mudanças no clima envolve, por exemplo, apoio à agricultura, por meio de poupança e investimentos voltados para melhorar a irrigação, desenvolver variedades mais adaptadas às condições climáticas, fortalecer o sistema de saúde e assegurar acesso a financiamento e à telecomunicação.

Apoio desse tipo é particularmente produtivo em regiões mais pobres, como a África Subsaariana. Mas é necessário também em outras regiões pobres do planeta, para que elas também estejam mais adaptadas às mudanças climáticas.

O FMI estima que o custo médio de adaptação às mudanças climáticas esteja em torno de 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) pelas próximas décadas. Tolerável para os padrões mundiais, esse custo é notavelmente mais alto em cerca de 50 países listados entre os mais pobres do mundo. Nesses, pode corresponder a 1% do PIB.

Os países pobres são os menos responsáveis pelas mudanças climáticas, mas é justamente sobre eles que, proporcionalmente, recai o maior custo para enfrentá-las. É, por isso, do interesse de todo o mundo que se encontre um meio para financiar os investimentos necessários nesses países. O custo de evitar um desastre é menor do que o de recuperar um país devastado, com efeitos sobre todo o planeta.

CVM sob risco de paralisia

O Estado de S. Paulo

Com verba reduzida para menos da metade, a Comissão de Valores Mobiliários, órgão fiscalizador do mercado de capitais, perde capacidade de ação

A incompetência do governo Bolsonaro, em particular do Ministério da Economia, em buscar entendimento com o Congresso Nacional em votações vitais para o funcionamento do Executivo gerou, no mercado de capitais, um descompasso entre o volume expressivo das negociações e a capacidade de atuação do órgão que assegura a lisura, a transparência e a confiabilidade das operações. O corte de mais de 50% das verbas orçamentárias da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) pode afetar de maneira significativa suas operações, com riscos para os investidores e para as empresas.

Em meio aos desdobramentos da pandemia, o mercado de capitais mostra um dinamismo expressivo. Estima-se que, no ano passado, mais 1,5 milhão de pessoas físicas passaram a operar nesse mercado, elevando o total para 3 milhões. Neste ano, até o dia 24 de março, houve entrada líquida de R$ 86,5 bilhões de capital externo na B3, a Bolsa de Valores de São Paulo. Apesar de a atividade econômica estar patinando e a inflação estar em níveis preocupantes, o mercado acionário continua atraente para investidores estrangeiros.

Nesse cenário, a CVM está sendo obrigada a encolher, o que afeta sua capacidade de investigar indícios de crime e de punir infratores do mercado de capitais. Em choque com boa parte do Congresso, dominado pelo Centrão, o Ministério da Economia foi o grande derrotado nas negociações sobre o Orçamento da União. O Congresso reduziu em cerca de 60% as verbas do Ministério, o que incluiu o órgão fiscalizador do mercado de capitais.

Outra consequência da incompetência do governo nas negociações com os parlamentares, como mostramos no editorial Desleixo com as agências reguladoras (28/3), é o atraso na discussão e votação pelo Senado dos nomes apresentados pelo Executivo para compor as diretorias de diversas agências reguladoras e para outras funções que precisam da aprovação dos senadores. As agências são essenciais para a rigorosa fiscalização dos serviços prestados à população por concessionárias privadas de serviços públicos. Mas o presidente Jair Bolsonaro e parte de seus auxiliares mostram, mais de três anos depois da chegada ao poder, não ter entendido esse papel.

O despreparo do governo está sendo grave para a CVM. Criada em 1977, depois de uma séria crise que afetou a credibilidade do mercado de valores mobiliários, a CVM vem tendo papel decisivo para manter a transparência das operações nesse mercado e dar-lhes a confiança indispensável para atrair investidores. Como lembrou seu primeiro presidente, Roberto Teixeira da Costa, em artigo recente na revista Relações com Investidores, no qual mostra os riscos que o corte de verbas traz, em 45 anos de operação a CVM contribuiu para a internacionalização do mercado, que se transformou com a maior sofisticação dos usuários e intermediários, a chegada de novos produtos financeiros e outras modernizações.

O orçamento de que a CVM disporá em 2022 é o menor em 13 anos. Cortes de verbas não têm sido raros nos últimos anos. Em 2018, o gasto discricionário do órgão alcançou R$ 27 milhões; em 2019, R$ 25 milhões; e, em 2020, R$ 20 milhões. Em 2021, houve recomposição das verbas, que somaram R$ 26 milhões. Para 2022, porém, são apenas R$ 12 milhões, menos da metade do que a CVM dispunha no ano passado. Quando essa redução brutal de verba foi aprovada, a direção da CVM disse, em nota, que “o recorrente contingenciamento de recursos na última década vem aumentando, progressiva e continuamente, os riscos operacionais dos macroprocessos de supervisão e fiscalização”.

A CVM não realiza concurso público desde 2010. De 610 cargos aprovados, só 435 estão preenchidos. Há um déficit de 30% de pessoal. O corte brutal de verbas neste ano torna a situação ainda mais difícil.

A segurança de que os investidores necessitam exige uma CVM em condições de fiscalizar, disciplinar, prevenir falhas, punir quando necessário e desenvolver regras adequadas para as mudanças inevitáveis na economia mundial. Ela é essencial para a credibilidade do mercado de capitais. Só o governo Bolsonaro não vê.

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