terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Carlos Andreazza - A República de Elmar

O Globo

A manchete de um grande jornal informou: “Governo Lula abre mão de verba para Lira distribuir emendas até a deputados de oposição”. Poderia ter simplificado: “Orçamento secreto continua”. Talvez pusesse uma pimenta: “Novo governo mantém prática do antigo”. Quem sabe dando nome aos bois: “Governo Lula dá sequência a esquema de Bolsonaro”. (E, então, o jornal seria cancelado. Como ousou equivaler o garantidor da democracia ao capiroto?)

Nada mudou, afinal. (Calma. Nada mudou em matéria de orçamento secreto.)

Sufocada a rubrica RP9, que classifica a emenda do relator, a gestão autoritária do orçamento da União driblou o Supremo e migrou à RP2, mantida a falsa administração dos recursos pelos ministérios. O orçamento era secreto porque movido por detrás de fachadas. As fachadas se deslocaram — para que o trânsito orçamentário permaneça na mão obscura de poucos senhores.

Lembro que a Lei Orçamentária Anual de 2023 veda o cancelamento — sem o aval do relator-geral — de dotações de despesas discricionárias que decorram de indicações do... relator-geral. Ficou tudo amarrado, conforme distribuição dos bilhões definida — sob indicação do relator — quando ainda vigorava o uso pervertido das emendas... do relator.

Não é, portanto, que Lula tenha aberto mão de verba para Arthur Lira distribuir até a deputados de oposição. O governo simplesmente não tem o que fazer. Longe, porém, de ser vítima.

A forma como os dinheiros do orçamento secreto — como os usos desses dinheiros — foram remanejados-recompostos derivou de acordo que desamarrou a aprovação da PEC da Transição. Lira e sócios mandam o Planalto pagar — e o Planalto paga. Daí por que contemplados também — como na época das emendas do relator — parlamentares de oposição. Não por gentileza de Lula. Mas porque Lira e o consórcio que lidera querem, em nome de interesses corporativistas. Ao governo cabendo controlar, em troca de votos nas matérias de seu interesse, o tempo das liberações. Ficam todos felizes, todos comprometidos entre si.

Nada mudou.

É preciso avaliar a natureza dessa continuação de práticas. É preciso também avaliar o uso do discurso de “não criminalização da política” como fachada para que avanços patrimonialistas sobre a superfície do Estado se perpetuem. Governos democráticos oferecem espaços na administração para que aliados participem da gestão. É do jogo. No entanto que jogo fazem governos democráticos que oferecem espaços na administração para que aliados pretendidos continuem gerindo viciosamente as mesmas superfícies corrompidas durante o período que o discurso democrático afirma querer superar?

O problema não está em dividir cargos — em partilhar o poder. Está em sustentar o esquema de poder lesivo que vigorou no governo Bolsonaro. O que significará Juscelino Filho ser ministro de Lula, senão o reconhecimento — o elogio — à capacidade de o orçamento secreto eleger novos poderosos?

Nada mudou.

Veja-se o caso da Codevasf. É propriedade, desde o governo Bolsonaro, do deputado Elmar Nascimento. E assim permanecerá; a Elmar cabendo decidir se manterá o atual presidente da companhia, cujo alargamento fez com que os vales do São Francisco e do Parnaíba chegassem até o Amapá do rio Alcolumbre, esse grande afluente.

A Codevasf de Elmar, que é Lira, foi — sob Bolsonaro — a arena preferencial para o espetáculo do orçamento secreto. Assim seguirá. Seguirão as irregularidades? Seguirão as irregularidades identificadas no governo Bolsonaro, mantida a mesma cadeia de comando na empresa? Poderá ser diferente? Apurações da Controladoria-Geral da União documentaram a transformação da companhia em fábrica de pavimentação Brasil adentro, com asfalto que esfarela como farinha. Mesmo no Amapá.

É um complexo perfeito de interesses alcolúmbricos.

A Codevasf, musa do orçamento secreto, fica com Elmar, que é Lira, em troca do apoio do União Brasil, que apoia ninguém — e quer mais sudenes. Que tal? Não haverá miragem maior que esperar o apoio de um partido que não existe, mas tem votos. Uma máquina de barganha — ou chantagem.

O União Brasil é uma federação de partidos-personas. Elmar é um. Davi Alcolumbre, um. Luciano Bivar, outro. Há outros. O governo entrega, entrega pavimentação, pensa se acercar do oásis, mas o deserto come o asfalto e pede mais e mais chão — mais areia. O governo entrega. O União, farinha, escapa entre os dedos, a cada votação demandando um novo Dnocs. Vale?

Não é somente investimento corruptivo, autoritário e caro. Mas corruptivo, autoritário, caro e inócuo. Areia — farinha — não faz base.

A grande questão, contudo, impõe-se mesmo à burrice da escolha contraproducente: se Bolsonaro, o sete-peles, entregou as codevasfs aos cuidados do consórcio Lira, em que página ficará o governo Lula ao manter os vales sob controle da República de Elmar?

 

3 comentários:

Fernando Carvalho disse...

Num contexto em que Zé Boiada teve mais votos que Marina Silva. E que Biruliro fez o governador de São Paulo. Lula teria condições de acabar com o Orçamento Secreto, moralizar a Codevasf e a Sudene? Uma coisa que devia haver em nosso país seria uma espécie de segunda votação em que o povo confirmasse a primeira. Creio que Zé Boiada seria desvotado.

Anônimo disse...

O colunista sabe, conhece o assunto 'pavimentação', 'estradas', 'asfalto' como ninguém.
É de família, lembra?

ADEMAR AMANCIO disse...

Brasileiro vota com convicção,é muito difícil a mudança de votos.