O Globo
Reviravolta na estratégia do Partido
Democrata, desde a inédita abdicação de Biden até o tom e o teor dos discursos,
mostram nova forma de enfrentar candidatos antipolítica
As eleições norte-americanas são uma pauta
obrigatória para todo mundo que trabalha com política --de jornalistas que
cobrem o tema a marqueteiros, passando pela academia e os próprios políticos.
Uma série de dilemas inéditos está posta diante dos eleitores da chamada maior
democracia do mundo, a começar da circunstância nunca antes experimentada de um
ex-presidente com múltiplas condenações e investigado por uma conspiração
contra a democracia conseguir ser indicado pelo seu partido para disputar a Casa
Branca novamente, como ocorreu com Donald Trump no Partido Republicano. E ter
largado com grandes chances de ser bem-sucedido!
Diante de algo assim tão novo e perigoso, a solução do Partido Democrata também foi histórica: Joe Biden anunciou, com a campanha já iniciada, que abdicaria de disputar a reeleição por aquiescer com a ideia, cristalizada depois do primeiro debate entre ele e Trump, de que não está em condições de saúde ideais para mais quatro anos no posto. A reviravolta levou à indicação da vice-presidente, Kamala Harris, e à injeção de novo ânimo, mais dinheiro e chances reais na campanha democrata.
Diante de um panorama que rasga os manuais
anteriores de campanha (e os americanos são reis em receitar o que se deve ou
não se deve fazer em eleições), vão-se criando uma linguagem e um discurso
novos para enfrentar a tentativa de ressurreição de Trump, e isso interessa ao
resto do mundo, pois o tipo de candidato antipolítica, com discurso sectário
para minorias ou maiorias minorizadas, que aposta na desinformação e no
achincalhe às instituições, sobretudo à imprensa, e no desrespeito no trato com
os adversários é um fenômeno que se repete em vários países, inclusive no
Brasil, com Jair Bolsonaro e seus assemelhados.
O que os dois dias da Convenção Democrata até
aqui mostram é que, a despeito de oradores que arrebatam mais o público,
discursos mais e menos emocionados, existe uma linha condutora na forma de
tratar Trump e assuntos delicados que foi definida por estrategistas e está
sendo seguida à risca, e que pode servir para nortear a maneira como políticos
lidam com esse tipo de adversário antipolítica (e, como tal, difícil de
combater) em muitas partes do mundo. Listei alguns desses pontos:
1. Não fugir de temas espinhosos. A forma
como os democratas estão tratando a pauta do aborto, tratando-a como uma
discussão a respeito de liberdade reprodutiva e esvaziando o estigma que
mistura reacionarismo e discurso religioso enviezado, é em tudo nova. Os tais
manuais preceituam que esse é o tipo de tema que deve ser evitado a todo custo
por candidatos, inclusive progressistas, mas Kamala Harris e os democratas
trataram de se apropriar da discussão, trazendo para a convenção, como reforço
dessa estratégia, depoimentos de mulheres que têm famílias convencionais,
portanto são "pró-vida", mas que tiveram de se submeter a abortos por
terem sofrido estupro ou por riscos à própria vida, e que teriam a
possibilidade negada depois de a Suprema Corte ter revisto a jurisprudência
sobre o tema. A mesma coragem é mostrada para tratar da discussão do Medicare e
da proposta republicana de cercear a permissão para fertilizações in vitro.
Assim, os democratas tentam resgatar o sentido da palavra "liberdade",
que nas últimas décadas foi tomada pela extrema-direita para defender a
desinformação e toda sorte de teorias da conspiração.
2. Apontar com clareza os riscos do discurso
de Trump. Praticamente todos os discursos na convenção apontaram as inúmeras
recorrências de machismo, misoginia, racismo, preconceito de classe, xenofobia
e teoria da conspiração no discurso do ex-presidente. Mas o fizeram de forma
firme, energética, sem dar margem para que a reação seja colocada na conta do
"mimimi", outro truque recorrente à extrema-direita derivada do
trumpismo mundo afora. Com autoridade e doses estudadas e precisas de ironia ("shade",
na linguagem consagrada pelas redes sociais), Michelle e Barack Obama
produziram frases de tremendo impacto para atingir Trump naquilo que ele tem de
mais caricato e antidemocrático, algo que os democratas até ontem pareciam ter
prurido em fazer.
3. A tal frente ampla. Os democratas se
cercaram de cuidados para não dar a Trump um dos últimos discursos que parecem
ter lhe restado: o de que Kamala seria "comunista". Várias falas
ridicularizaram o expediente resgatando o histórico da vice-presidente. A
jornalista Ana Navarro, emigrante nicaraguense, fez uma fala forte apontando os
autocratas que se apresentam como de esquerda (Daniel Ortega, os irmãos Castro
e Nicolás Maduro) e apontando neles características que os aproximam de Trump,
e não de Kamala. Ao mesmo tempo, repudiou sem meias palavras a ditadura que
grassa nesses países. Da mesma forma, é inteligente a presença de republicanos,
inclusive ex-mandatários do partido, na convenção, mostrando que o repúdio a
Trump e ao que ele representa em termos de rebaixamento da política não é uma
batalha restrita ao partido adversário.
4. O resgate da esperança e a aposta na diversidade. Talvez embalados pela origem de sua candidata, os democratas fizeram sua convenção mais colorida e representativa. Na longa rodada em que os Estados sucessivamente anunciavam os votos de seus delegados em Harris, houve um desfile de tipos que formam a identidade americana, uma maneira também nova e corajosa de combater de frente o discurso anti-imigração de Trump. O apelo em alto e bom som aos valores democráticos, em contraposição ao fato de a candidatura republicana representar um projeto eminentemente pessoal de revanche, também têm o condão de neutralizar uma arma responsável por eleger Trump em 2016, a da instrumentalização do ressentimento e do ódio.
3 comentários:
Muito bom!
"Um ex-presidente com múltiplas condenações e investigado por uma conspiração contra a democracia", isto é, CRIMINOSO GOLPISTA! Estamos falando do Bolsonaro ianque ou do Trump tupiniquim?
"Inúmeras recorrências de machismo, misoginia, racismo, preconceito de classe, xenofobia e teoria da conspiração no discurso do ex-presidente." Estamos falando do GENOCIDA ianque ou do GENOCIDA tupiniquim?
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