quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Sobre zona de conforto, meritocracia e Trump - Eugênio Bucci

O Estado de S. Paulo

Protágoras dizia que o homem é a medida de todas as coisas. Pois, no trumpismo e nas suas adjacências, o dinheiro é a medida de todas as coisas, inclusive do homem

Dia desses, assistindo a uma entrevista num canal de TV da internet, vi um capitalista dizer que, para ganhar mais dinheiro, precisa sair de sua “zona de conforto”. Oh, chavão. Pelo que pude entender, a “zona de conforto” representaria para ele um convite à acomodação e à preguiça improdutiva. Logo, um estado de relaxamento e de calma seria um vício moral; o homem de negócios sem ócios precisa sempre contar com uma dose de aflição, de nervosismo e até de medo, ou não terá disposição para correr riscos, mesmo que calculados. Moral da história: o conforto não é bom para o tilintar das caixas registradoras.

Outro capitalista, esse mais velho, nos tempos em que tinha um banco de investimentos na Avenida Faria Lima, comentava com seus diretos que não gostava de “gato gordo”. Ele não se referia a felinos, óbvio. Ele falava de homens. O “gato gordo”, em seu dicionário, era aquele ex-jovem promissor que rapidamente se refestelava numa posição remediada e se dava por satisfeito com ganhos de adiposidade, não mais de cifrões. A partir daí, o “gato gordo”, indolente, comprava uma casa de campo num condomínio fechado com heliporto e não queria mais saber de aventuras perigosas. Segundo os ensinamentos do lendário banqueiro, o “gato gordo” era uma praga. Quando identificava um, demitia correndo.

A expressão “gato gordo” não se popularizou, ficou só para iniciados. A outra, “zona de conforto”, esta caiu na boca do povaréu e virou clichê no mundo corporativo. A toda hora, alguém aparece na sua frente para falar mal da “zona de conforto”, um signo universal de morosidade, procrastinação, inoperância e falta de iniciativa (pública ou privada).

A ideologia funciona exatamente assim: as implicâncias idiossincráticas do patrão são alçadas a cânones inabaláveis de virtude para o empregado. De pé, oh, vítimas da fome! Fujam da sua zona de conforto!

Sim, estou sendo irônico. Se for para falar sério, digo que “zona de conforto” é piada de mau gosto. Na vida de um bilionário, que não precisa saber quanto custa a anualidade da escola dos filhos e troca de jatinho todo ano, pode até ser divertido quebrar a rotina de vez em quando e desafiar o sossego, um pouquinho só. Mas, na vida do resto da humanidade, uma pitada de estabilidade tranquila é tudo de bom.

Deveria ser festejada, nunca repudiada.

Eu, de minha parte, prefiro aplaudir. Viva o conforto, e viva a zona que o envolve. Viva o emprego que oferece aconchego. O sujeito já passa por agruras indescritíveis todos os dias com a enchente do bairro, a polícia desembestada, a disparada do preço da banana – o governador grava um vídeo mandando a gente comer banana com casca –, o amigo assassinado num assalto, e, na hora do expediente, ainda precisa aturar os chefes que o ameaçam com terrorismos de colarinho branco só porque, na religião deles, o conforto é contraproducente. Não dá.

O conforto faz bem. Mais ainda, o conforto é um direito humano, e o melhor da nossa existência – a beleza, a contemplação, o repouso e a fruição – brota quando nos sentimos seguros e medianamente felizes, não quando estamos premidos pelo pavor ou pela necessidade. Só mesmo na cabeça de um usurário é que o desconforto traz benefícios para o balanço da empresa e para o progresso da sociedade. Haja ideologia.

Isso posto, mudo de verbete. Donald Trump, já empossado na Casa Branca, disse que agora nos Estados Unidos o que vai valer é a “meritocracia”. Soem todos os alarmes. O que pode significar meritocracia na língua do líder republicano? Será algo de bom? Que ninguém tenha dúvida: há muito mais mérito num morador de rua que passa a noite sob um viaduto e na manhã seguinte não comete suicídio do que no filho de papai, ou mesmo Donald, que nunca precisou suar a gravata para poder almoçar.

Quando ouço Trump falar em mérito, eu tenho vontade de puxar a alavanca do assento ejetor. O dele. O presidente dos Estados Unidos também deve acreditar que a “zona de conforto” precisa ser eliminada, basta ver o que ele promove na Faixa de Gaza, em Guantánamo, nos lares dos imigrantes em Newark, nas universidades que estudam democracia, nas agências de notícias e na Ucrânia. Um filósofo disse uma vez que o inferno são os outros. Nada a opor. Mas, para Donald Trump, o inferno dos outros é o paraíso. O dele. Isso preocupa muito mais. Meritocracia? Faça-me o pavor, digo, faça-me o favor.

Wilhelm Reich costumava abrir seus livros com a mesma epígrafe: “Amor, trabalho e sabedoria são as fontes da nossa vida. Deviam também governá-la”. Tristemente, quem governa a nossa vida é a ideologia da “zona de conforto”, do “gato gordo” e da “meritocracia”. Protágoras dizia que o homem é a medida de todas as coisas. Pois, no trumpismo e nas suas adjacências, o dinheiro é a medida de todas as coisas, inclusive do homem.

No prólogo do seu livro A tirania do mérito (Editora Alfaguara), Michael J. Sandel escreveu que havia “uma mistura tóxica de arrogância e ressentimento” na força que levou Trump ao poder em 2016. Em 2024, a mistura foi pior.

 

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