O Globo
‘A boba da corte’, de Tati Bernardi, é um
livro fascinante sobre as vulgaridades e hipocrisias das elites de São Paulo, narrado
com uma potente mistura de distanciamento de classe e adesão cínica. A
narradora conta sua ascensão social da classe média baixa, vinda de um mundo
“suburbano italianado” da Zona Leste de São Paulo, para o mundo dos
bem-nascidos, um mundo demarcado pelo dinheiro, pela linhagem social e pelas
referências culturais.
Ela conta como sua autoconsciência de classe na infância foi distorcida pela limitação de sua experiência social, marcada pela separação dos pobres do bairro, que não conseguiram, como ela, arrumar os dentes, estudar em escola particular e estudar inglês. Quando entra no mercado de trabalho, descobre a distância que a separa dos verdadeiramente ricos e, quando encontra a elite ilustrada, aspira ser reconhecida como par por meio do seu talento literário.
Suas relações amorosas são uma divertida
combinação de desejo erótico pelo superior e desprezo pela fraqueza moral de
quem não teve de lutar na vida:
— No primeiro encontro, passamos pelo menos
uma hora nos pormenores da formação acadêmica dele. Eu sentia a xana latejar.
Quanto mais nomes de universidades gringas, viagens culturais e diplomas de
arte ele me narrava, mais eu desejava me abaixar no meio do restaurante e
lamber suas bolas.
Ao mesmo tempo que inveja a dignidade advinda
da boa condição, extrai prazer vingativo da incapacidade artística de quem teve
uma vida excessivamente cômoda e que, por isso, carece de verdade e urgência.
— Falta vontade de se vingar, de competir.
Falta ter sofrido bullying no ginásio e depois no colegial e depois na
faculdade. Falta ter faltado dinheiro. Falta ter sido feio, sacaneado,
esnobado. Falta ter sido esmagado, ano após ano, pelo desabamento do que você
achou que seria finalmente seu chão. Falta ser quebrado, infeliz, já ter
pensado em morrer.
O livro é uma crítica ácida às
idiossincrasias das elites, simultaneamente informada por desprezo e desejo de
pertencimento. Na urgência de ascensão social, a cultura e o saber são apenas
um instrumento para galgar um degrau, produzindo o que ela chama de “monstro
cínico”.
A ênfase na cultura entendida como distinção
de classe é uma certa lucidez sociológica do ator social ascendente, mas é
também um reducionismo. Não há dúvida de que o domínio dos códigos sociais e do
repertório simbólico é usado pelas elites para demarcar as fronteiras de
classe. Mas esses valores intelectuais e culturais, adquiridos na formação
universitária e na fruição artística, não se reduzem apenas a isso.
A formação humanista é também uma busca pela
compreensão e pelo entendimento; e a formação cultural, um esforço genuíno pela
expressão estética. Esses valores substantivos podem estar em harmonia, mas
podem também entrar em choque com a função de demarcar as classes. Quando a
narradora os vê fundamentalmente como função social, reduz toda a vida
espiritual a um jogo vulgar de interesses, e o romance se lê como uma espécie
de “Comédia humana” sarcástica e paulistana.
Por um lado, o livro de Bernardi parece ser
mais um romance do gênero “autobiografia de classe”, na esteira de Annie Ernaux
(“O lugar”), Didier Eribon (“Retorno a Reims”) e Édouard Louis (“Para acabar de
vez com Eddy Bellegueule”) — mas, enquanto estes autores articulam a narração
da ascendência de classe com uma reflexão sociológica, no livro de Bernardi a
narrativa da ascensão social é entremeada por uma crônica de observação mordaz
e ressentida.
É um livro muito engraçado porque inclui
observações perspicazes sobre as aflições mesquinhas da gente de berço, mas é
também um livro amargo, porque embebido pelo universo destituído de valores que
denuncia.
Enquanto, na autobiografia de classe, a
trajetória do autor é explicada pelo comentário sociológico, em “A boba da
corte” o que ilumina as relações sociais é a tensão entre um distanciamento
autoirônico e um arrivismo cínico. É porque a narradora está encharcada da
pobreza espiritual que critica que o livro consegue extrair das situações
narradas sua potência cômica, produzindo um mal-estar duradouro. No fim, “A
boba da corte” é uma confissão existencial de quem tentou vencer o jogo das
elites com suas próprias armas — e emergiu da jornada vitoriosa, mas moralmente
ferida.
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