Correio Braziliense
Anistia é ato promovido pelo vencedor da
batalha política. Ao perdedor resta a possibilidade de espernear em praça
pública
Anistia é um gesto bonito, político e de
longo alcance. É, usualmente, ato mastigado e maturado, negociado entre várias
partes ao longo do tempo até que resulte em perdão. É decisão cristã, bonita,
que liberta o perdoado e o que perdoou. Os dois se livram do peso da acusação,
das lembranças e de eventuais remorsos. O perdão limpa tudo e promove a
remissão da pena, da ofensa ou da dívida. Em alguns países, como nos Estados
Unidos, o crime não prescreve. Não há perdão. Mas sempre depende da decisão do
governante, do rei, do imperador ou da principal autoridade.
A história do Brasil é cheia de momentos em que revoltosos, por qualquer razão, fazem seu movimento, são derrotados e, logo em seguida, são anistiados. É uma prática política destinada a evitar radicalização de blocos irreconciliáveis. No entanto, ainda no tempo da colônia, houve grave articulação para que Minas Gerais se tornasse independente do império português. A conspiração, que permaneceu no nível das articulações sigilosas, foi descoberta em 1789 por consequência da delação de Joaquim Silvério dos Reis, que ganhou em troca a quitação de suas dívidas com o Tesouro Real.
Os réus foram acusados do crime de
lesa-majestade, como previsto pelas Ordenações Filipinas, Livro V, título
6, materializado em inconfidência ou falta de fidelidade ao rei.
"Lesa-majestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do Rei, ou seu
Real Estado, que é tão grave e abominável crime, e que os antigos sabedores
tanto estranharam que o comparavam à lepra; porque assim como esta
enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar".
Doze dos condenados foram sentenciados à
morte. A condenação foi comutada por ordem de D. Maria I para penas diversas, a
maioria de degredo na África. Exceto Tiradentes. Ele foi enforcado e depois
esquartejado. Seus despojos foram expostos ao longo do Caminho Real, que ligava
Vila Real ao porto. É um exemplo da justiça dos portugueses, da atual os
brasileiros herdaram alguns conceitos. Ninguém ousou falar em anistia.
No Brasil, ocorreram diversas resoluções, ou
tentativas de golpe político, para depor governos ou mudar o regime. Os
monarquistas perderam todas. Na Ilha do Desterro, Santa Catarina, em abril de
1894, os revoltosos tentaram derrubar o governo Floriano Peixoto. Foram
fuzilados e a ilha, como vingança, recebeu o nome de Florianópolis. Em Canudos,
no sertão baiano, Antônio Conselheiro criou vilarejo que ganhou fama de
monarquista. Após quatro tentativas, o Exército acabou com a iniciativa ao
custo de 15 mil mortos. O coronel Moreira Cesar, comandante-geral, foi morto na
terceira expedição. Canudos hoje está debaixo de água na represa do Rio
Vaza-Barris. Ninguém falou em anistia. A princesa Isabel chegou a conversar na
Europa sobre a chamada Restauração. Não deu certo. D. Pedro II faleceu em
dezembro de 1891 em Paris, no discreto hotel Bedford, vítima de diabetes.
A República é uma sucessão de crises, a
maioria delas surgida no meio militar a partir de julho de 1922, no episódio
dos 18 do Forte, ocorrido no Rio de Janeiro. Depois, na mesma data em 1924, os
rebeldes tomaram São Paulo. O governo central cercou e bombardeou a cidade.
Eles se retiraram para a fronteira com o Paraguai e dali se originou a coluna
Prestes, que cruzou o Brasil no sentido diagonal até o Rio Grande do Norte.
Ao final dessa monumental guerrilha, eles
foram escorraçados pelos fazendeiros do interior da Bahia e fugiram para a
Bolívia. Uns se tornaram comunistas, como Prestes, outros voltaram à política
nacional depois de uma anistia. Alguns integraram o governo Vargas, que esteve
no poder entre 1930 e 1945.
Sem qualquer dúvida, a anistia mais
importante da República ocorreu em 1979. Marcou o início do fim dos governos
militares no Brasil. Foi a tentativa de reconciliação entre torturadores e
torturados. Entre atacantes e atacados. Entre usurpadores e usurpados. Entre
mortos e seus carrascos. Não foi a melhor solução, foi a pacificação possível
encontrada pelo saudoso ministro da Justiça Petrônio Portella. Reverbera até
hoje. Militares produziram um livro, que não foi publicado, contando sua versão
(o título é curioso: Orvil). Os civis também produziram suas histórias.
A tentativa de anistia do pessoal do 8 de
janeiro de 2023 ainda é muito recente. Há inocentes úteis. Mas, profissionais
trabalharam no assalto aos Três Poderes. E gente graúda, sem dúvida, conspirou
exatamente como fez a turma de Vila Rica. Os mineiros, contudo, tinham
objetivos mais nobres. Lutavam pela liberdade, não queriam restabelecer uma
ditadura. Trabalharam dentro do manual clássico de fazer revolução. Se der
certo, a revolução é vitoriosa. Se não, clama pelo perdão. Anistia é ato
político promovido por quem está no poder. Ou seja, o vencedor da batalha
política. Ao perdedor resta a possibilidade de espernear em praça
pública.
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