O Estado de S. Paulo
A questão fiscal não pode ser resolvida
ouvindo-se apenas os que têm voz, ignorando aqueles que formam uma espécie de
parte silenciosa da sociedade
Caneta vermelha e algum conhecimento de
matemática parecem suficientes para fundamentar propostas de ajuste das
finanças da União. Contas simples mostram que acabar com o aumento real do
salário mínimo reduziria expressivamente muitos gastos, sobretudo na área
social. Desindexar os benefícios previdenciários, reduzindo-os em termos reais,
igualmente facilitaria o ajuste. O corte de programas sociais completaria bem o
pacote. Vozes poderosas propõem medidas dessa natureza.
Se o governo aceitasse propostas como essas, é provável que a questão fiscal deixasse de ser foco de preocupações e de divergências entre os Poderes. Mas, num país com imensos problemas sociais, as dificuldades de muitas pessoas cresceriam a um nível insuportável. Por isso, governos preocupados com as condições de vida da população evitam soluções como essas. A questão fiscal não pode ser resolvida ouvindo-se apenas os que têm voz, ignorando aqueles que formam uma espécie de parte silenciosa da sociedade.
Felizmente, entre os que têm voz, há quem
proponha que outros sejam ouvidos. Em nota até certo ponto surpreendente, o
presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Josué
Gomes da Silva, advertiu que as soluções dos problemas do País devem ser
alcançadas por meio de entendimento, “ou afundaremos todos juntos”.
Corajosamente, o presidente da Fiesp reconheceu que “ninguém quer abrir mão de
seu quinhão, dos seus benefícios, das suas vantagens”. Como observou, “o
problema é sempre o vizinho ”, mas todos têm responsabilidade na escolha dos
caminhos que conduziramà atual crise.
Ainda assim, ninguém quer aumento de imposto.
E o Congresso, vendo no debate do ajuste fiscal uma oportunidade para
enfraquecer um governo com uma base parlamentar fragmentada, vem resistindo a
todas as propostas do Palácio do Planalto que impliquem mais tributação.
Apesar do clima de confronto que se
estabeleceu no Congresso, é necessário destacar que mudanças precisam ser
feitas, para estabelecer critérios que atendam minimamente ao princípio da
justiça tributária. Como observou com clareza o pesquisador do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Marcos Hecksher em entrevista ao jornal
Valor Econômico, na estrutura atual do Imposto de Renda, os ricos pagam
proporcionalmente bem menos imposto do que os pobres. “É como se fosse uma
política pública dizendo que ajuda quem está no topo a permanecer ali. E, para
quem não está no topo, cobra mais imposto para atrapalhar a subida”, resumiu
Hecksher. Trata-se, como disse, de uma “política de imobilidade social”. Com um
regime tributário desses, ainda “há quem prefira cortar os benefícios aos mais
pobres”, o que “tornaria o ajuste injusto.”
Se o ajuste, como reclamam os que têm voz
mais poderosa, tem de ser feito pelo lado dos cortes, há muitas possibilidades.
Por que o Congresso não examina o Projeto de Lei 4920/94? Trata-se de
iniciativa do Executivo que estabelece idade mínima para aposentadoria dos
militares, acaba com a chamada “morte ficta” (permite que a família de um
militar expulso das Forças Armadas receba pensão como se ele tivesse morrido) e
extingue a transferência da cota de pensão (a parte de um dependente que morre
passa para outros membros da família). O projeto foi apresentado em dezembro do
ano passado, mas está parado. “Situação: aguardando despacho do presidente da
Câmara dos Deputados”, informa o portal da Câmara.
Ou então, por que não acabar com as emendas
parlamentares, que, no Orçamento da União para 2025, podem chegar a R$ 52
bilhões? Esse valor representa um quarto dos gastos discricionários, ou seja, a
parte do Orçamento da União sobre a qual o governo tem liberdade para decidir o
uso (a maior parte do Orçamento tem destinação definida, como transferências e
gastos mínimos estabelecidos na Constituição, folha de pagamento e despesas do
sistema previdenciário)
Outra sugestão, esta encampada pelo
presidente da Fiesp, é a redução das vantagens tributárias para determinados
setores, que deveriam ter validade limitada. “Esses benefícios, que muitas
vezes são dados em momentos justificáveis, acabam se perpetuando indefinidamente,
o que afeta não só as contas públicas, mas também a eficiência econômica”,
observou o documento da Fiesp.
Isenções dessa natureza compõem o que a
Receita Federal considera “gastos tributários”. São tributos que, por razões
legais, não são recolhidos. Neste ano, eles devem alcançar R$ 544,5 bilhões. Aí
está claramente uma importante fonte para o ajuste fiscal. Parte desse valor
não pode ser arrecadada, pois decorre de benefícios tributários inscritos na
Constituição. Mas outra parte pode. O problema é que ela beneficia, em grande
medida, aqueles que mais têm voz nas críticas a medidas que conduzam à maior justiça
social e tributária. Nesse terreno, ainda somos um país onde quem berra mais
pode mais. •
*Jornalista, é autor, entre outros, do livro
‘O súdito (banzai, massateru!)’ (Editora Terceiro Nome) e presidente do centro
de estudos nipo-brasileiros (jinmonken)
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