quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Opinião do dia: O Estado de S. Paulo* – A política não é dispensável

É absolutamente fora de propósito o STF convocar audiência pública para discutir se a Constituição está certa ou errada. Eventual discussão sobre essa matéria cabe ao Congresso. O Supremo é o guardião da Constituição, que define, com clareza meridiana, a filiação partidária entre as condições de elegibilidade. Ao tratar dos direitos políticos, o art. 14, § 3.º da Carta Magna estabelece que “são condições de elegibilidade, na forma da lei, a nacionalidade brasileira, o pleno exercício dos direitos políticos, o alistamento eleitoral, o domicílio eleitoral na circunscrição, a filiação partidária e a idade mínima”, específica para cada cargo. Assim, seria preciso mudar o texto constitucional para que seja juridicamente viável uma candidatura sem vínculo partidário – e quem discute e vota Proposta de Emenda Constitucional (PEC) é o Poder Legislativo, não o Judiciário.

O Estado de S. Paulo. Editorial, “A política não é dispensável”, 11/12/2019

Rosângela Bittar - Ora, polarização

- O Estado de S.Paulo

A polarização entrou no clima eleitoral antes que se definissem os candidatos

Então, chega um novo Datafolha e desmente a impressão geral de que a polarização é irreversível e que o radicalismo é marca irremovível do cenário político. Com uma revelação adicional: os brasileiros são legalistas apaixonados, têm um olho na lei e outro na emoção.

Os mesmos 54% que antes apoiaram a decisão de prender Lula aprovam agora sua libertação, simplesmente porque assim foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal.

Como a política vive da projeção eleitoral, os planos de Lula pós-prisão guardam certa identidade com a percepção que vem tendo o eleitorado. Pode-se aprovar e desaprovar, não é preciso temer, discurso não machuca nem muda o mundo, deixa acontecer e o que vai lograr. As instituições são sólidas, tudo tranquilo. Até aqui, brother.

A miragem da polarização aconteceu de fora para dentro do governo e do PT. Dois dias depois que Lula saiu da prisão, Bolsonaro saiu do silêncio que se impôs sobre o fato e passou a revidar o ataque sofrido nos discursos da celebração.

Vera Magalhães - Esquerda no rehab

- O Estado de S.Paulo

Partidos tentam alternativa a Lula, mas patinam na falta de nomes e projeto claro

O congresso de “refundação”, com todas as aspas e as ressalvas que esta palavra tão gasta pelos partidos brasileiros merece, do PSB jogou luz sobre um processo que a esquerda não-petista brasileira deflagrou de forma atabalhoada em 2018 e, com a soltura de Lula, acelera: o rehab da dependência ao PT.

Como todo processo de desintoxicação, esse inclui hesitação, recaídas e tentativas de redução de danos por meio de paliativos. Também como toda tentativa de largar um vício, não é algo linear nem livre de sofrimento.

Por muitos anos o PSB esteve no lugar em que o PCdoB prefere permanecer e ao qual o antes rebelde PSOL voltou: o de satélite do lulopetismo. Isso começou a mudar com o projeto presidencial de Eduardo Campos, frustrado pela sua morte em plena campanha de 2014, teve idas e vindas e ficou na geladeira em 2018 diante da recusa de Joaquim Barbosa a enfrentar o rojão de uma candidatura presidencial que, mostravam as pesquisas, poderia ser bem-sucedida.

Agora o partido tenta mais uma vez largar a adição. Deixou formalmente o famigerado Foro de São Paulo, que tem pouca relevância prática, mas virou um boitatá a assombrar a narrativa da direita, fez uma crítica à ditadura venezuelana e não se apressou a subir ao palanque de Lula assim que ele foi solto em Curitiba.

O partido descreve, assim, trajetória similar à do PDT de Ciro Gomes, à cada vez mais acanhada Rede, de Marina Silva, e ao PV. Claro que é o próprio Ciro que sonha amalgamar essas legendas em torno de mais uma tentativa de chegar ao Planalto, mas a repetição de seus cacoetes e a falta de um discurso eficaz para quebrar a polarização fazem com que os potenciais parceiros demonstrem dúvida quanto a embarcar em sua canoa.

Luiz Carlos Azedo - A iniquidade social

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“A estagnação da escolaridade e a má distribuição de renda são os vetores mais dramáticos da nossa desigualdade, pois puxam para baixo a qualidade de vida de toda a população”

Obra pré-modernista, de caráter histórico-literário, Os Sertões, de Euclides da Cunha (1866-1909), publicado em 1902, foi a primeira grande crítica à iniquidade social no Brasil. Embora de caráter regionalista, ao narrar os sangrentos acontecimentos da Guerra de Canudos (1896-1897), liderada por Antônio Conselheiro (1830-1897), no interior da Bahia, teve grande impacto na opinião pública da época, em especial entre os jovens militares, sendo uma das fontes de inspiração do Tenentismo.

A obra descreve o sertão nordestino (o relevo, a fauna, a flora e o clima), o homem (o sertanejo, o jagunço, o cangaceiro e o líder messiânico) e, finalmente, a luta (as quatro inglórias campanhas do Exército para destruir o pequeno arraial de 20 mil habitantes). Nunca antes a questão social no Brasil havia sido abordada com tanto realismo, nem mesmo na campanha abolicionista, cujo coroamento fora a Lei Áurea, 14 anos antes.

A justificativa para o massacre de Canudos fora uma suposta ameaça à consolidação do regime republicano, devido ao caráter sebastianista do movimento liderado pelo místico Antônio Conselheiro. No livro, Euclides da Cunha questiona o ufanismo e o nacionalismo da época, bem como a visão idealizada que se tinha sobre a formação e o caráter do povo brasileiro.

O homem descrito por Euclides da Cunha, que fez a cobertura jornalística da Guerra de Canudos como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, 100 anos depois, vive nas periferias e favelas dos grandes centros urbanos do país, seja na condição de trabalhador informal, seja como traficante ou miliciano. A iniquidade social é a mesma. A diferença é que já não é possível resolver o problema à bala, como em Canudos, embora alguns continuem tentando.

Na época de Antônio Conselheiro não havia IDH, o índice criado para a ONU pelos economistas Amartya Sen, indiano, prêmio Nobel de 1998, e Mahbub al Huq, paquistanês, com objetivo de mensurar as condições de saúde, de escolaridade e de renda das populações e assim aferir os níveis de desigualdades entre os países. O do Brasil, divulgado no domingo passado, mostra um quadro desolador, em grande parte agravado pela recessão provocada pela “nova matriz econômica” do segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do governo Dilma Rousseff.

Direitos humanos
São impressionantes os efeitos negativos da recessão, entre os quais a existência de 12 milhões de desempregados crônicos. O índice brasileiro perdeu três posições desde 2013. De 2017 a 2018, em um ranking de 189 países, retrocedemos do 78º lugar para 79º, com um IDH de 0,761 (quanto mais próximo de 1, maior o desenvolvimento humano). Estamos atrás da Rússia e da Argentina, para usar apenas esses dois paradigmas. E muito distantes da Noruega e da Suíça, que lideram os IDHs dos países desenvolvidos.

Paulo Delgado* - Brasil, Nobel do pessimismo

- O Estado de S.Paulo

Não adianta ter força no País quando o jogo moral é jogado lá fora. A assimetria é mortal

O que está levando Trump ao impeachment não é aquela culpa no cartório, mas o fato de usar uma nação estrangeira para influenciar decisões dentro da política interna americana.

Diferente do Brasil, que pratica há anos uma política mórbida, por isso não tem até hoje um Prêmio Nobel, e entregou de mão beijada a supremacia que adquiriu com a fabricação de aviões médios e está fazendo tudo para entregar a agroindústria à intriga internacional. Porque, internamente, além de olharmos mal para o futuro, externamente inúmeros brasileiros adoram falar mal do País e até se dedicam a escrever cartas, telefonar, visitar e azucrinar os suecos e noruegueses para não reconhecerem o papel de descortino mundial que tiveram Alysson Paulinelli, Nise da Silveira, César Lattes, Ozires Silva, Lara Rezende-Pérsio Árida, dentre outros.

O Brasil tem de se dedicar um pouco mais a valorizar o que sabe fazer. Pois a qualidade de tudo o que é descoberto ou inventado hoje, especialmente tecnologia, deveria ser objeto de contratos de como deve ser seu uso, e não de discursos patrióticos sobre se aquilo é ou não oportuno. Tudo o que é serviço será digital, toda a poluição será monitorada, e não é possível imaginar um país sem unidade interna, política e empresarial, para criar sua própria legislação sobre o uso do que comanda o mundo moderno.

Não haverá nenhum Simão Cirineu ajudando o País a carregar a sua cruz.

O brasileiro precisa parar de viver achando que tem de ser arruinado para que restauradores da calamidade se apresentem. A prosperidade exige compromisso com a harmonia. Pede autoridade e confiança, não força e discriminação. Maldades civis, indiretas militares e incitação à revolta, devemos desconfiar, debaixo de qualquer oratória.

Vinicius Torres Freire - Bolsonaro, a geringonça da extrema-direita

- Folha de S. Paulo

Apesar de tumultos, há um arranjo político até aqui estável na política e na economia

Pode parecer doido quem diga que houve alguma estabilidade neste quase primeiro ano de Jair Bolsonaro. Mas há um arranjo político que dura desde março, que evitou o desgoverno total, o desarranjo geral no Congresso e os piores arreganhos autoritários ou disparates jurídico-administrativos.

Além do mais, não houve choque político da dimensão vista neste país pelo menos desde 2013, a cada ano. Mesmo a avaliação de Bolsonaro mantém-se praticamente estável desde abril, embora tenham se deteriorado as expectativas de sucesso de seu governo.

As altercações e os ultrajes quase diários dão a impressão de movimento caótico. Avanços e recuos em medidas e leis demonstram que o governo carece de coordenação político-administrativa, pelo menos segundo o padrão geralmente aceito de planejamento racional.

Hélio Schwartsman - Viés de ranqueamento

- Folha de S. Paulo

O IDH não é uma corrida

A mídia foi mais ou menos unânime em anunciar os resultados do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 2018 destacando o fato de que o Brasil perdeu uma posição. Passou do 78º para o 79º lugar entre os 189 países e territórios avaliados pela ONU.

Isso é um fato e eu não sou do governo para brigar com fatos. Receio, contudo, que tenhamos aqui sido vítimas do viés de ranqueamento, que é a propensão humana a colocar em formato de ranking tudo aquilo que tem expressão quantitativa.

Não estou dizendo que rankings nunca façam sentido. Eles são uma exigência lógica em muitas situações. O problema com o IDH é que ele não é uma corrida. Se algum país que estava abaixo do Brasil melhorou mais que nós, só nos resta parabenizá-lo —e sinceramente, já que sua conquista em nada nos prejudica.

Bruno Boghossian - Pirraça presidencial

- Folha de S. Paulo

Brasileiro demorou a adotar pragmatismo e preferiu investir em implicância ideológica

A agenda oficial não tinha nenhum compromisso extraordinário. Não apareceu nem mesmo um corte de cabelo emergencial, como o que impediu seu encontro com o chanceler da França, em julho.

Jair Bolsonaro passou boa parte da manhã e o início da tarde desta terça (10) em reuniões corriqueiras, mas não foi à posse do novo governo argentino, que acontecia naquele horário. Mandou apenas o vice Hamilton Mourão e protagonizou mais um episódio de pirraça presidencial.

O episódio mostra que Bolsonaro não consegue resistir à tentação de uma implicância ideológica, mesmo que isso possa causar prejuízos ao país. Quando Alberto Fernández e Cristina Kirchner já eram mais do que favoritos na eleição do país vizinho, o brasileiro fez questão de dizer que torcia contra a vitória da dupla.

Fernando Exman - Culpa na judicialização das relações políticas

- Valor Econômico

Estudo coloca em xeque críticas de ativismo judicial

O Supremo Tribunal Federal encerra 2019 em lugar de destaque no noticiário e no imaginário popular. Quando o cidadão comum lembra com mais facilidade o nome dos 11 ministros da Corte Suprema do que a escalação de muitos times de futebol, contudo, há que se debruçar sobre as razões desse fenômeno.

Para integrantes da cúpula do STF, o Judiciário exerceu papel fundamental para serenar as crises institucionais que insistiram em rondar a Praça dos Três Poderes. Na opinião de dirigentes partidários, julgamentos e decisões foram muitas vezes, respectivamente, cenários e protagonistas de episódios da conflagrada guerra política com a qual o país convive há anos.

Mas uma tese dificilmente pode ser refutada por lideranças partidárias: são os partidos alguns dos principais responsáveis pelo chamado processo de judicialização da política que tanto criticam. Ainda mais quando as legendas estão na oposição.

Em muitos casos, o Supremo se tornou a única opção de quem é minoria na Câmara e no Senado. Sobretudo diante da constatação de que distintos governos têm transformado o Palácio do Planalto em uma espécie de fábrica de editar medidas provisórias e decretos.

O uso parcimonioso das ações judiciais é legítimo e deve ser visto como um ato do jogo, uma vez que está previsto na Constituição. Mas a judicialização da política acabou virando uma prática do dia a dia de alguns partidos.

Há diversos instrumentos, nos regimentos do Parlamento, para se tentar modificar ou obstruir o avanço das propostas originadas no Planalto. Mesmo assim, não raro os partidos de oposição têm dificuldades de atuar em conjunto.

Merval Pereira - Sem esquecer

- O Globo

Bancos de dados das diversas operações levam a novas investigações, como já acontecera outras vezes

A operação Mapa da Mina, nome cuja explicação ainda está para ser dada, e representa a própria essência da nova fase da Lava Jato, é um recado para quem acha que já está livre das investigações. Há dois anos e dez meses a Operação Aletheia, que levou o ex-presidente Lula a depor coercitivamente à Polícia Federal no aeroporto de Congonhas, foi iniciada, mas só agora chega a seu fim.

Foram documentos apreendidos naquela ocasião que levaram a essa operação de ontem, e o nome dela é o título da apresentação financeira interna do grupo que foi investigado pela Aletheia. Ainda não se sabe o que significa, mas que o nome é sugestivo, isso é.

Entre os investigados estão os filhos de Lula, Fabio Luis, que o ex-presidente dizia ser “o Ronaldinho dos negócios”, Marcos Claudio, Sandro Luis e Luis Claudio. A “coincidência” de que estavam envolvidos em negócios milionários com Jonas Suassuna e a família Bittar, proprietários no papel do sítio de Atibaia, reforça a suspeita de que o ex-presidente era, na verdade, o proprietário oculto do sítio, que seria um pagamento pelos favores feitos a seus negócios.

Bernardo Mello Franco - Bolsonaro inventou o calote ideológico

- O Globo

Bolsonaro inventou uma nova modalidade de calote. Questionado sobre a dívida bilionária do Brasil com a ONU, alegou que a entidade estaria “aparelhada”

Jair Bolsonaro inaugurou o calote com desculpa ideológica. O Brasil deve cerca de R$ 1,7 bilhão às Nações Unidas. Se não quitar parte do débito até o fim do mês, poderá perder o direito a voto.

O Ministério da Economia alertou o Planalto para o risco do vexame diplomático. Ontem o presidente indicou que não pretende coçar o bolso. “Não estou preocupado com isso”, disse. “Muitas decisões da ONU não interessam para a gente. A gente sabe que está politizado esse negócio. Está aparelhado”, acrescentou. Ao ser lembrado de que o Brasil pode ser retaliado, ele deu de ombros. “Paciência”, desdenhou.

O calote internacional não é invenção do atual presidente. Dilma Rousseff também deixou de cumprir suas obrigações com a ONU. Suspendeu os pagamentos em 2014, no início da crise econômica. Deixou uma dívida superior a R$ 1 bilhão, quitada no governo de Michel Temer.

Zuenir Ventura - Falta de educação

- O Globo

Seria melhor que Weintraub apresentasse propostas para melhorar o ensino

A última do ministro da Educação, Abraham Weintraub, — ou penúltima — é, pra variar, uma fake news. Ele postou no Twitter que este ano não haveria o tradicional show de fim de ano de Roberto Carlos na Globo: “É o primeiro ano que o rei se livra do mico dos Marinho”, comemorou. Só que o especial está confirmadíssimo para o próximo dia 20. Aliás, já está até gravado.

Antes ele fez pior. Também sem apresentar provas, disparou acusações de que universidades federais estariam cultivando maconha: “Não são três pés, são plantações extensivas a ponto de ter borrifador de agrotóxicos”. E, mais, haveria também “produção de drogas sintéticas em laboratórios de química”.

Frei Betto* - A face injusta do Brasil

- O Globo

Direitos humanos não é 'coisa de bandido' como alardeiam os que jamais pensam nos direitos dos pobres. É um dos mais elevados marcos jurídico e moral de nosso avanço civilizatório

Desde a ditadura militar (1964-1985), nunca houve tantos retrocessos nos direitos humanos no Brasil como agora, sob Bolsonaro . Somos governados por autoridades que insistem na impunidade das forças repressivas, o que representa sinal verde para a eliminação sumária de suspeitos ou mesmo de cidadãos insuspeitos, como os nove jovens assassinados pela PM de São Paulo na favela de Paraisópolis , na madrugada de 1º de dezembro. Apenas no Rio, neste ano de 2019, seis crianças foram mortas por “balas perdidas” .

Terras demarcadas são invadidas por mineradoras, madeireiras e empresas agropecuárias. Indígenas são assassinados, entre eles o líder Paulo Paulino Guajajara, no Maranhão, a 1º de novembro, por defender a reserva de seu povo da ação de madeireiros ilegais. Os casos de feminicídio se multiplicam; uma mulher é violentada a cada 4 minutos no país.

O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo , cuja nomeação está sendo contestada pela Justiça, cospe na memoria de Zumbi, herói quilombola, ao declarar que no Brasil não existe racismo, e que “a escravidão foi benéfica para seus descendentes”... No Paraná, o jornalista Aluízio Palmar é processado por denunciar torturas no quartel do 1º Batalhão de Fronteira, em Foz do Iguaçu. O país tem mais de 12 milhões de desempregados, e o salário mínimo a vigorar em 2020 foi reduzido duas vezes pelo governo.

Elio Gaspari - Paul Volcker, um servidor público

- O Globo | Folha de S. Paulo

Ele mandou na economia americana e quebrou o Terceiro Mundo. Vestia-se mal e morava numa quitinete

No final do século passado, Paul Volcker estava num coquetel na Universidade de Princeton, uma daquelas confraternizações nas quais os americanos tomam vinho branco em copos de plástico. Um curioso aproximou-se da sua imponente figura (2m01cm) e, no meio da conversa, arriscou:

— O seu livro publicado em parceria com o ex-presidente do Banco do Japão deixa a impressão de que em 1982 o senhor quebrou o Terceiro Mundo para salvar os bancos americanos.

Volcker assumiu o Federal Reserve Bank em 1979, com a inflação americana acima de dois dígitos. Como presidente do banco central mais poderoso do mundo, paulatinamente jogou os juros para cima, e eles chegaram a 21% ao ano. Com isso, num cenário de alta do petróleo e baixa de outras matérias-primas, as dívidas dos países do Terceiro Mundo atreladas às taxas americanas explodiram. Em 1982, o México não conseguiu pagar suas contas. Meses depois, foi a vez do Brasil, e em alguns meses, só na América Latina, 16 países estavam quebrados. Deu-se a esse período o nome de “Crise da Dívida do Terceiro Mundo”.

Volcker respondeu ao curioso:

— Esse era o meu serviço (“That was my job.”), e a conversa migrou para amenidades.

Roberto DaMatta - O que ensina a inflação

- O Globo | O Estado de S. Paulo

Controlamos a alta dos preços só para nos darmos conta da ‘corrupção estrutural’, os elos espúrios

Numa crônica escrita no auge da inflação, Otto Lara Resende ironizava: o Brasil não tinha terremoto, tufão ou furacão mas tinha inflação.

Uma hiperinflação que canibalizava o poder de compra dos eternos pobres e dos assalariados. Os ricos, como sabemos, nada sofriam: apenas queixavam-se com razão da “política”, do “governo” e do “Estado” como se tais entidades fossem administradas por marcianos, e não por seus compadres, sócios, amigos e parentes. Reificados e fetichizados, governo, política e Estado foram tornados reais e dotados de uma autonomia social absurda, cuja função é a de isentar os poderosos e letrados; os que, de algum modo, se livraram das suas responsabilidades sociais. Pois, em nenhum país que se preze, pode haver um Estado e uma administração pública constituídos por estrangeiros ou outros; exceto neste nosso Brasil, onde se diz com um ar casual: “Pois é! Ele é meu pai, mas esse negócio de Presidência, governo e política é coisa dele. Eu não tenho nada com isso.” O lixo da casa é jogado na rua; o problema não é nosso, é do lixeiro e da prefeitura.

A dolorosa percepção do mal-estar desses tempos críticos está ligada a uma avassaladora informação. Hoje, não se pode mais desculpar ou tolerar a fabulação de que nada temos a ver com o “Estado” ou o “governo” (o mundo da rua), que seriam os responsáveis exclusivos pelo lado ruim da vida, enquanto ainda almejamos um emprego (mas não um trabalho) público — zona que seria de todos e, por isso, todos poderiam dela tirar proveito: o emprego vitalício e bom salário, além de privilégios aristocráticos. Somente agora é que começamos a discernir que nosso mundo mudou. A casa ficou mais perto da rua, ética e valores políticos e econômicos são espinhosa e toscamente discutidos. A direita surgiu de dentro da esquerda, e a franqueza hoje é rude. Ficou muito difícil esconder o roubo público. Mas o pior é que a igualdade perante a lei deixou a teoria e tornou-se, quando é possível, uma prática.

Míriam Leitão - A esperança dos recomeços

- O Globo

Dilema argentino é que reduzir a crise social é urgente, mas sem estabilidade na economia qualquer plano estará fadado ao fracasso

A Argentina vai experimentar de novo o mesmo caminho de ampliar os gastos, estimular o crescimento, não pagar a dívida externa. Esses foram os sinais dados ontem pelo novo presidente Alberto Fernández. O discurso peronista volta com força diante do fracasso do liberalismo defendido pelo ex-presidente Mauricio Macri. O truque do discurso de Alberto Fernández é o mesmo de qualquer político: colocou toda a culpa nos últimos quatro anos. É verdade que Macri fracassou na economia, mas Cristina Kirchner deixou um país já com a crise instalada.

A esperança é sempre tentadora em recomeços, principalmente quando o ritual democrático é respeitado. O Congresso estava lotado de peronistas cantando diante do novo presidente e sua vice eleitos pelo voto direto. Podiam comemorar, era a hora da vitória depois de terem saído do governo há quatro anos. O presidente derrotado em sua tentativa de permanecer no poder, Mauricio Macri, ouviu respeitosamente o canto dos vencedores. No discurso de posse, Fernández exibiu os dados inegáveis da crise e prometeu derrotá-la com os remédios nos quais acredita.

Ele avisou que primeiro quer fazer a economia crescer para depois pagar os credores e disse que o país já está em “default virtual”. Ainda que o FMI tenha mandado mensagem simpática avisando que quer se entender com o novo governo argentino, o fato é que os juros não podem ser pagos por falta de dólares em caixa. Só neste dezembro são US$ 5 bilhões para quem tem reservas líquidas que podem estar abaixo de US$ 10 bilhões. De qualquer maneira, apesar de ele ter falado em renegociação, é possível que o novo governo deixe para anunciar qualquer medida em relação à dívida junto ao FMI e credores privados depois de uma negociação com o Fundo.

O novo governo prometeu um plano de combate à pobreza, mas também diz que vai estimular a produção, decretou emergência na saúde, avisou que fará acordos com os trabalhadores, industriais, produtores rurais. Não disse como pretende combater a inflação, que na Argentina tem sido um problema crônico.

O que a mídia pensa – Editoriais

A política não é dispensável – Editorial | O Estado de S. Paulo

Na segunda-feira passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou audiência pública sobre a possibilidade da adoção de candidaturas avulsas, sem filiação partidária. A audiência foi convocada pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator de uma ação questionando a obrigatoriedade da filiação tal como prevista na Constituição de 1988. Ao justificar a medida, o ministro Barroso explicou que a audiência pública seria uma oportunidade para discutir os aspectos positivos e negativos das candidaturas avulsas, as eventuais dificuldades para sua implantação e os efeitos de tal permissão sobre o sistema partidário e o regime democrático.

É absolutamente fora de propósito o STF convocar audiência pública para discutir se a Constituição está certa ou errada. Eventual discussão sobre essa matéria cabe ao Congresso. O Supremo é o guardião da Constituição, que define, com clareza meridiana, a filiação partidária entre as condições de elegibilidade. Ao tratar dos direitos políticos, o art. 14, § 3.º da Carta Magna estabelece que “são condições de elegibilidade, na forma da lei, a nacionalidade brasileira, o pleno exercício dos direitos políticos, o alistamento eleitoral, o domicílio eleitoral na circunscrição, a filiação partidária e a idade mínima”, específica para cada cargo. Assim, seria preciso mudar o texto constitucional para que seja juridicamente viável uma candidatura sem vínculo partidário – e quem discute e vota Proposta de Emenda Constitucional (PEC) é o Poder Legislativo, não o Judiciário.

Música | Noel Rosa - Filosofia

Poesia | Fernando Pessoa - Estou cansado

Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.