sábado, 30 de agosto de 2008

Modesto da Silveira: "Não se deve anistiar torturadores e golpistas"


Diógenes Botelho
DEU NO PORTAL DO PPS

Deputado Federal que encaminhou o projeto que deu origem a Lei da Anistia, Modesto da Silveira diz que homicídios, estupros e roubos cometidos por agentes do governo militar precisam ser tratados como crime comum. "Não se deve anistiar torturadores e golpistas", defende Silveira em entrevista ao Portal do PPS.


De engraxate, ajudante de carro de boi e guia de cego até deputado federal da oposição durante a ditadura militar, tempo em que se notabilizou como um dos maiores advogados do país na área de direitos humanos. A vida do mineiro Modesto da Silveira é por si só um exemplo de resistência. Em passagem por Brasília para participar de sessão solene da Câmara em homenagem aos 29 anos da Lei da Anistia, encaminhada por ele no Congresso, conversou com o Portal do PPS. Aos 81 anos, segue firme em sua luta pelos direitos humanos e pela radicalidade democrática. Não tem receio em entrar em assuntos polêmicos, como a revisão da Lei da Anistia. Para ele, homicídios, estupros e roubos cometidos por agentes do governo militar precisam ser tratados como crime comum. "Não se deve anistiar torturadores e golpistas", defende. Na entrevista, falou ainda sobre sua experiência como advogado de presos políticos, da perseguição que sofreu da ditadura, de um grupo golpista que ainda resiste no Exército brasileiro, entre outros assuntos. Confira.

Portal do PPS - Qual era o clima daquele 28 de agosto de 1979, quando o Congresso aprovou a Lei da Anistia?

Modesto da Silveira - Eu era deputado e fui o encaminhador da lei, em nome de Ulysses Guimarães (ex-presindete do MDB/PMDB), na votação do plenário. Tinha saído do hospital, estava doente, e vim em cadeira de rodas tentar votar. Quando cheguei, o Ulysses olhou e disse: Modesto, você agüenta subir as escadinhas (para a tribuna). Eu disse: Claro, agüento, eu vou me arrastando, mas vou. No que ele respondeu: Então, encaminha a lei para a gente. Fiz o encaminhamento, justifiquei que a lei não era a que nós desejávamos. Nós queríamos a anistia ampla, geral e irrestrita para os perseguidos políticos e não para os perseguidores políticos. Mas, como a ditadura ainda durou muitos anos (até 1985), eles (os militares e seus sustentadores políticos) àquela altura tinham condição de impor o tipo de anistia em que concordariam. Até porque o Congresso Nacional era composto de muitos biônicos. Tanto que nessa ocasião, em 1978, a oposição, que era o MDB, teve cerca de 5 milhões de votos a mais do que a ditadura (representada pela Arena), e no entanto eles tinham o maior número de representantes porque havia os biônicos eleitos. Havia também aquele processo semibiônico de fortalecer os estados onde a ditadura era forte. E nos estados onde ela era fraca, calcularam matematicamente, e deu para eles fazerem uma maioria artificial. Então, ou nós aceitávamos aquela (Lei da Anistia) ali, negociando, ou não teríamos anistia nenhuma. E ela já foi um passo para as anistias posteriores, o que inclusive acabou redundando no artigo 8° do ato das disposições constitucionais transitórias (da Constituição de 1988, que estabeleceu o pagamento de indenizações e reparação de direitos aos atingidos pela ditadura). E já naquela primeira anistia foi possível tirar muita gente da cadeia e receber os milhares de exilados que estavam em toda parte do mundo, sobretudo na Europa.

Portal – Como foram os bastidores dessa negociação?

Silveira - Foi uma negociação difícil, muito difícil. Tentávamos ampliar e eles não concediam. Era esta ou não era nenhuma. Foi o máximo conseguido naquele momento.

Portal - Na sua opinião, é válida, hoje, a rediscussão da Lei da Anistia no Brasil, como alguns setores políticos estão propondo?

Silveira -
Para a anistia, a tese que eu acho mais aconselhável e interessante, e que não é de hoje, é de muitos anos, é a que se tenta ganhar na ONU. É aquela que eles acham o seguinte: anistia sim, mas anistia é para aqueles que são vítimas de tiranias e ditaduras em geral. Esses devem ser anistiados. Agora, os fabricantes de ditaduras e tiranias não devem receber anistia nenhuma. Porque senão você estará estimulando novos golpes para o futuro, sobretudo em países como o Brasil e o Chile, onde eles (os militares) se auto-anistiaram previamente pelos crimes que já tinham cometido e que ainda iriam cometer no futuro. Isso é uma coisa inédita e inaceitável pela humanidade. Imagine você, a lei era de 79 e a ditadura foi até 85. E os que vinham praticando crimes, torturando, estuprando, furtando e se corrompendo continuaram fazendo as mesmas coisas. É um privilegium, como diriam os romanos. Ninguém pode fazer lei em causa própria. E eles fizeram lei em causa própria para o passado, o presente e o futuro. O passado, pelos crimes que cometeram, e o presente e o futuro pelos crimes que estão ou irão cometer ainda. Isso é realmente uma teratologia (anomalia) jurídica. É um absurdo que foi cometido. A tese saudável hoje, que você vê elementos da ONU fazendo pronunciamentos, é aquela que anistia vítimas de ditaduras, de autoritarismos. Não se anistia autoritários, ditadores. E por quê? Porque eles serão estimulados a de novo derrubar outras democracias, estabelecendo ditaduras.

Portal - E por que apostar na tese da ONU?

Silveira - Porque ela tem a força moral e jurídica do mundo inteiro. Das 194 nações soberanas, você tem 192 que pertencem à ONU. Portanto, o que é decidido pela ONU pode se tornar lei praticamente no mundo inteiro.


Portal - Então, na sua opinião, ainda é possível, hoje, punir os agentes da ditadura brasileira? Fazer o que, segundo as suas próprias palavras, não foi possível fazer em 1979?

Silveira -
Se eles não forem punidos aqui, serão punidos lá fora. Um juiz espanhol e um italiano decretaram a prisão e o Pinochet (ex-ditador chileno Augusto Pinochet), o maior dos torturadores, foi preso na Inglaterra por um ano e tanto e chegou ao seu país e continuou respondendo processo político. Pois bem, hoje em dia se esses mesmos torturadores brasileiros ou de qualquer ditadura forem a Europa, poderão ser presos lá. Eles hoje estão prisioneiros de algum modo no Brasil porque estão limitados ao território brasileiro. Se eles saírem do Brasil, qualquer cidadão de outro país que eles visitem pode denunciar. Eles gostam de ir para Europa, principalmente, Espanha, França, Itália, etc... Bateu lá, o nome deles está lá e eles serão presos. Então, eles não podem ir a esses lugares. Já estão com a liberdade limitada, o que é uma prisão parcial. E a tese da ONU me parece uma tese saudável para você estabelecer democracias e procurar aperfeiçoá-las. E nunca permitir que se derrube uma democracia para estabelecer uma ditadura.

Portal - Como foi atuar como advogado de presos políticos em uma época dura, como foi a ditadura militar no Brasil?

Silveira - Eu fui advogado de todo o tipo de categoria profissional. Estudantes, crianças, menores, profissionais, parlamentares e até gente que acabou sendo ministro. E muitos advogados, fui advogado de muitos advogados. Todo mundo sofria. Eu mesmo, por essa ousadia toda, também fui sequestrado pelo DOI-CODI do Rio de Janeiro. Naquela altura não ousaram me marcar fisicamente porque eu estava conhecido até no exterior. Mas procuraram me marcar o máximo psicologicamente nos setores de tortura do DOI-CODI da Rua Barão de Mesquita.

Portal - Qual a importância de se relembrar, sempre, toda essa história?

Silveira - Por isso, comemorações como esta do Congresso (sobre os 29 anos da anistia) são importantes para ajudar a passar essa realidade, esse resgate para as jovens gerações. Para que elas tomem pavor de qualquer forma de autoritarismo, de tirania. Lute contra isso e ganhe consciência de que a democracia, por mais deformada que esteja, é infinitamente melhor do que a situação que passamos durante todo o período de ditadura. Mesmo com as deformações pelo poder econômico, pelas elites econômicas que deformam o processo democrático. Na ditadura, foram presos, sofreram, direta ou indiretamente, centenas de milhares de pessoas. Isso as que resistiram. As que não resistiram morreram, ou se exilaram ou foram banidas do país, e muitas delas não quiseram mais voltar porque têm péssimas lembranças, têm medo que pode acontecer outra vez.

Portal - Outra vez?

Silveira - Porque existem certos militares irresponsáveis que fazem ameaças ora veladas, ora abertas.

Portal - Mas o senhor acredita que há mesmo o risco de um novo golpe militar no país?

Silveira - Sobre isso eu lhe diria o seguinte. Eu estou convencido que estão blefando. Primeiro: o mundo de hoje não está em descenso ditatorial. Está em ascenso democrático. Segundo: aqueles que praticaram isso (deram o golpe militar em 1964) eram uma minoria das Forças Armadas com suporte de uma minoria civil. Então, hoje, eles não têm condição nenhuma disso. E se o fizerem vão receber o repúdio da população brasileira e certamente uma ação diferente (daquela de 1964). Por outro lado, o isolamento completo de um mundo que tende a reprimir sempre as ditaduras. Veja bem: se os próprios militares que são democratas, obedientes à lei e ao juramento que fazem isolarem esse grupelho, as Forças Armadas sairão íntegras. Porque um número muito maior foi vítima. Os militares golpistas eram pequenos grupos, fortemente armados e muito bem organizados.

Portal - E os arquivos da ditadura, que já se transformaram em uma "brincadeira" de pique-esconde. Uma hora foram queimados, depois aparece documento...

Silveira - A abertura dos arquivos é outro clamor público. Todo mundo precisa dos arquivos, até porque há o direito a habeas-data, sobretudo o que se refere a si mesmo. E a pessoa precisa não só para a sua história pessoal ou justificação junto a filhos, netos, familiares, mas até para tentar ter uma anistia (ou reparação). E os arquivos secretos não permitem que você corrija um erro passado. Eles todos (militares) se auto-anistiaram. Quem era capitão virou coronel ou general e continua aí infiltrado no poder. Vocês se lembram do depoimento que aquela deputada Beth Mendes fez daquele coronel, hoje general, Brilhante Ustra, que estava implantado na embaixada uruguaia como adido. E ela o reconheceu como um de seus torturadores, chefe de tortura. Há coisas assim flagrantes, chocantes... Se as Forças Armadas entenderem, pagarão muito menos se isolarem esse grupo de torturadores do que dando cobertura a eles. Porque isso não é uma questão de solidariedade de armas ou de classe, é uma questão de justiça, de fidelidade e honradez. Por que é que um militar hoje que não cometeu nenhum delito, que é apenas um vocacionado para as Forças Armadas, estará dando cobertura para assassinos, torturadores e estupradores? Isolando esses criminosos, eles estariam resgatando a imagem das Forças Armadas.

Portal - Mas o senhor é a favor do julgamento, no Brasil, dos criminosos da ditadura?

Silveira - Eles são considerados criminosos de crimes comuns. Não me consta que qualquer estupro, tortura, furto, e tudo isso que aconteceu por parte deles, seja crime político. Isso é crime comum. E onde já se viu você se dar uma lei pela qual você se perdoe de todos os crimes passados, presentes e futuros. A situação é essa, eu vejo assim. Creio que a tese que está percorrendo os gabinetes da ONU é muito correta. Não se deve anistiar torturadores e golpistas porque senão as democracias do mundo desaparecem. Todos aqueles que acham que têm um poderzinho ficam dispostos a golpear.

Portal - O ministro da Justiça, Tarso Genro, levantou essa questão. Mas o presidente Lula resolveu mandar parar o assunto...

Silveira -
Posso dar um palpite. Todo governador, prefeito e presidente da República não gosta de crise, quer governar tranqüilo. Então, tenta botar panos quentes para naturalmente governar mais tranqüilo, porque o governo vai bem economicamente, até socialmente, o prestígio pessoal do presidente é muito grande...Para ele é bom que o país esteja em calma. Mas, eu creio que os ministros que têm essa tese, que é a da ONU, manifestam uma posição moralmente muito segura, muito firme.

Portal - E se o Judiciário for provocado a respeito dessa questão?

Silveira - Olha, essa é uma questão mais de natureza política do que jurídica. São leis políticas, de anistia política, de crime exclusivamente político. E não se diga que haja conexão. Não há conexão nenhuma (entre vítimas e agentes da ditadura) como pretendem da lei (da Anistia). A conexão é quando se trata do mesmo indivíduo. Digamos: dois ou três indivíduos acertam para cometer um assalto, um roubo, um estupro. Esses são crimes conexos, que é um acerto para uma finalidade. Uma finalidade entre os mesmos criminosos. Agora, não se trata de criminoso e vítima. Você não conecta um crime da vítima com o crime do criminoso. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. É preciso punir como o Chile fez, como a Argentina também o fez.


Portal - Ou seja, na sua opinião, a anistia não abrange crimes comuns?

Silveira - Para crime comum, não. Como você vai anistiar um sujeito que foi lá, invadiu sua casa, tomou seu dinheiro, roubou o que quis da casa, sem responsabilidade nenhuma. Levou uma pessoa, estuprou-a, arrebentou-a, até matou-a. É um homicídio como outro qualquer, um estupro como outro qualquer, um furto ou roubo como outro qualquer. Isso é crime comum, não é crime político.

Um comentário:

Universidade de Direito á Distância disse...

Não consigo entender como o Sr Modesto da Silveira,não comenta que a ação dos militares foi a pedido do povo através das "marchas das famílias com Deus pela liberdade",com cerca de 1 milhão de participantes do País.Então, o golpe foi do povo.Quem foi que botou o povo nas ruas? Foi a corrupção descarada da época e de agora.Militares já!!!!!Esse ladrão continua recebendo honorários de bandidos,pagos pelo povo.