quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Debate velho e inconcluso:: Alon Feuerwerker

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE (ontem)

Para a esquerda brasileira, a democracia representativa, com liberdade partidária e alternância no poder, é uma premissa do progresso social? Ou é em última instância um obstáculo?

Num partido de esquerda, e que portanto adora discutir, chama atenção a dificuldade do PT quando vai debater certos temas. Um deles é a luta armada dos anos 1960 no Brasil. Está evidente a esta altura que foi um grave erro político. Mas como restam laços, até afetivos e biográficos, e há também a justa obrigação de homenagear o heroísmo de muitos, ela é deslocada para o terreno da mitologia, onde a política tem dificuldade de trafegar.

Desse balanço inacabado decorre outro problema: o desconforto do PT ao abordar a essência do debate sobre a democracia. A questão esteve no centro das polêmicas que fizeram nascer as organizações guerrilheiras, movimentos derrotados no que se propunham: a conquista do poder por meio da revolução e a abolição do capitalismo.

Em consequência da derrota militar, ao longo dos anos 1970 os remanescentes e sobreviventes da luta armada foram se incorporando à frente parlamentar-institucional. Até que a fundação do PT absorveu na “luta legal” os últimos céticos que resistiam ao “caminho burguês”.

A História é fascinante também por causa dos paradoxos. O PT é o herdeiro principal das vertentes políticas que aderiram ao projeto guerrilheiro (é furado chamar Dilma Rousseff de neopetista; ela já era petista muitos anos antes de o PT existir), mas acabou por comprovar que o melhor mesmo era se organizar para alcançar o governo por meio de eleições. Apoiado sim nos movimentos sociais, mas 100% voltado para a conquista progressiva de espaços de poder com a ajuda das urnas.

É impossível na prática, mas se alguém pudesse fazer hoje a contabilidade acumulada nestes 30 anos para medir quanto tempo o PT, em todos os níveis, gastou discutindo eleição ou outros assuntos a estatística seria autoexplicativa.

Só que a mudança na realidade material costuma vir antes da flexão nas ideias, gerando uma certa tensão, que se prolonga tanto mais no tempo quanto menos o sujeito histórico reflete sobre a própria experiência. Daí que o PT em seu congresso aprove plataformas para o partido, apenas para em seguida garantir que elas não serão aplicáveis no programa de governo. Em teoria, as justificativas são “táticas”, pela ausência de força própria e pela necessidade de alianças.

Mas esse “etapismo” também é bem descrito na literatura: as metas estratégicas ficam como objeto de culto e conforto espiritual, enquanto a tática ocupa todo o espaço reservado à política.

E, assim, no dia em que tiver força suficiente os objetivos partidários também já terão mudado, pois ao transformar a realidade é inevitável que ela também opere uma metamorfose no agente da transformação. Desse jeito caminha a humanidade, também na política.

O debate sobre o valor universal da democracia foi ensaiado no interior do Partido Comunista Brasileiro na passagem dos anos 1970 para os 1980, sob a dupla influência da história do próprio PCB e do assim chamado eurocomunismo, nascido remotamente das reflexões do PC italiano sobre o golpe contra Allende no Chile em 1973 e em seguida adotado pelos comunistas franceses e espanhóis.

A discussão acabou abortada quando o PCB conduziu a polêmica contra as posições de Luiz Carlos Prestes para a ruptura orgânica, à esquerda (contra o prestismo) e à direita (contra o eurocomunismo), e acabou inviabilizado como partido de massas. Deixando completamente aberta a estrada para a construção da hegemonia do PT, que veio a ocupar o vácuo com grande competência, conduzido por Lula.

Mas, como atual gerente do boteco socialista, agora é o PT quem se vê na contingência de lidar com assuntos inconclusos. A dúvida é essencialmente a mesma desde meio século atrás. Para a esquerda brasileira, a democracia representativa, com liberdade partidária e alternância no poder, é uma premissa do progresso social? Ou acaba sendo um obstáculo, dado que nela há sempre a possibilidade de o partido ser removido, pacificamente, do governo?

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