DEU NA FOLHA DE S. PAULO
A grandeza de um país não se faz pelo poder de armas, mas pela chance de cada pessoa se realizar como ser humano
DO GRUPO dos Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), somos o único país que não é potência nuclear, nem militar convencional, uma vez que nossa força é meramente defensiva. No linguajar do professor Joseph Nye, que nos visita, temos apenas "soft power" (poder suave ou de persuasão, de exemplo), quase nenhum "hard power" (poder duro, de constranger por meios militares ou econômicos). Isso é bom ou ruim?
Para alguns, trata-se de anomalia a ser corrigida o mais rápido possível. É o caso do atual governo, que, numa curiosa volta ao regime militar, parece cada vez mais embriagado com sonhos de armas mirabolantes e caras, compradas com créditos de países estrangeiros que terão de ser pagos pelos sucessores. Outros chegam à insensatez de querer reviver o programa nuclear clandestino proibido pela Constituição e liquidado pela Nova República.
Há sentido em imitar países que têm vivido quase em estado de guerra permanente quando completamos 140 anos de paz com nossos dez vizinhos? Se nos armarmos, inclusive com bombas atômicas, como se sentirão os que nos cercam? Ficarão impassíveis ou voltarão, como a Argentina no passado, a reiniciar a corrida de armas com o Brasil? Estaremos mais seguros ou uniremos os demais contra nós?
Se as ameaças não vêm dos vizinhos, de onde procedem? Dos distantes chineses ou russos, dos mais próximos americanos? É altamente duvidoso, mas, se fosse certo, teríamos alguma chance de igualar seus gigantescos arsenais? Teríamos de desviar recursos já insuficientes para ter estradas e aeroportos decentes, o dinheiro que falta para permitir a milhões de brasileiros uma moradia segura e digna?
A recente e ligeira melhora em nossas condições econômicas e sociais parece ter subido à cabeça dos que já nos veem como país próspero, a esbanjar dinheiro e a arrotar grandezas. Basta olhar em torno, porém, para ver o abismo de miséria que nos cerca. A catástrofe do Rio de Janeiro deveria servir ao menos como choque de realidade capaz de nos restituir o senso das prioridades.
Enquanto fazemos malabarismos de imaginação para tentar identificar inimigos externos num futuro indeterminado, os deslizamentos matam centenas de brasileiros humildes forçados a morar em cima de um monte de lixo. Que país queremos ser, a Rússia armada até os dentes, onde a expectativa de vida diminui a cada ano, ou o Canadá, campeão em desenvolvimento humano? O que faz a grandeza de uma sociedade não é a glória militar ou o poderio de armas.
É a capacidade de garantir a cada pessoa a possibilidade de se realizar como ser humano, o direito da busca da felicidade, como se dizia na época da Revolução Americana. Todos os índices de bem-estar, educação, saúde, cultura, ausência de crime e de corrupção mostram que não são as grandes potências a ocupar os primeiros lugares, mas as nações que priorizaram as necessidades humanas básicas. Em um país como o nosso, de pesada herança de desigualdades, esse dever se impõe ao governo de forma ainda mais premente.
Com humildade e sóbrio realismo, deveríamos tentar construir uma potência não em armas, mas em direitos humanos e em ambiente, em educação e em equilíbrio social. Descobriríamos com surpresa que o nosso "soft power" daria ao Brasil um poder de influência e exemplo que jamais atingiríamos pelas armas.
Rubens Ricupero, 73, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
A grandeza de um país não se faz pelo poder de armas, mas pela chance de cada pessoa se realizar como ser humano
DO GRUPO dos Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), somos o único país que não é potência nuclear, nem militar convencional, uma vez que nossa força é meramente defensiva. No linguajar do professor Joseph Nye, que nos visita, temos apenas "soft power" (poder suave ou de persuasão, de exemplo), quase nenhum "hard power" (poder duro, de constranger por meios militares ou econômicos). Isso é bom ou ruim?
Para alguns, trata-se de anomalia a ser corrigida o mais rápido possível. É o caso do atual governo, que, numa curiosa volta ao regime militar, parece cada vez mais embriagado com sonhos de armas mirabolantes e caras, compradas com créditos de países estrangeiros que terão de ser pagos pelos sucessores. Outros chegam à insensatez de querer reviver o programa nuclear clandestino proibido pela Constituição e liquidado pela Nova República.
Há sentido em imitar países que têm vivido quase em estado de guerra permanente quando completamos 140 anos de paz com nossos dez vizinhos? Se nos armarmos, inclusive com bombas atômicas, como se sentirão os que nos cercam? Ficarão impassíveis ou voltarão, como a Argentina no passado, a reiniciar a corrida de armas com o Brasil? Estaremos mais seguros ou uniremos os demais contra nós?
Se as ameaças não vêm dos vizinhos, de onde procedem? Dos distantes chineses ou russos, dos mais próximos americanos? É altamente duvidoso, mas, se fosse certo, teríamos alguma chance de igualar seus gigantescos arsenais? Teríamos de desviar recursos já insuficientes para ter estradas e aeroportos decentes, o dinheiro que falta para permitir a milhões de brasileiros uma moradia segura e digna?
A recente e ligeira melhora em nossas condições econômicas e sociais parece ter subido à cabeça dos que já nos veem como país próspero, a esbanjar dinheiro e a arrotar grandezas. Basta olhar em torno, porém, para ver o abismo de miséria que nos cerca. A catástrofe do Rio de Janeiro deveria servir ao menos como choque de realidade capaz de nos restituir o senso das prioridades.
Enquanto fazemos malabarismos de imaginação para tentar identificar inimigos externos num futuro indeterminado, os deslizamentos matam centenas de brasileiros humildes forçados a morar em cima de um monte de lixo. Que país queremos ser, a Rússia armada até os dentes, onde a expectativa de vida diminui a cada ano, ou o Canadá, campeão em desenvolvimento humano? O que faz a grandeza de uma sociedade não é a glória militar ou o poderio de armas.
É a capacidade de garantir a cada pessoa a possibilidade de se realizar como ser humano, o direito da busca da felicidade, como se dizia na época da Revolução Americana. Todos os índices de bem-estar, educação, saúde, cultura, ausência de crime e de corrupção mostram que não são as grandes potências a ocupar os primeiros lugares, mas as nações que priorizaram as necessidades humanas básicas. Em um país como o nosso, de pesada herança de desigualdades, esse dever se impõe ao governo de forma ainda mais premente.
Com humildade e sóbrio realismo, deveríamos tentar construir uma potência não em armas, mas em direitos humanos e em ambiente, em educação e em equilíbrio social. Descobriríamos com surpresa que o nosso "soft power" daria ao Brasil um poder de influência e exemplo que jamais atingiríamos pelas armas.
Rubens Ricupero, 73, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
Nenhum comentário:
Postar um comentário