Após revoltas árabes, Brasil troca risco da parceria com a Turquia pelo conforto do alinhamento aos Brics
O recrudescimento da crise financeira e a Primavera Árabe são as principais mudanças do quadro externo desde a posse do governo Dilma. A primeira é vital e ameaça o crescimento nos três primeiros anos do mandato.
Ao reagir adotando política intervencionista em juros, câmbio e comércio, Dilma muda as condições de inserção do Brasil no mundo de forma mais decisiva do que qualquer ação diplomática estrita.
A outra mudança, a árabe, não tem para nós a mesma importância. Essa é a explicação da troca do risco da parceria com a Turquia pelo conforto do alinhamento aos Brics.
No final do governo, Lula tinha escolhido como cenário de projeção o Oriente Médio, entrando pesado num ambiente onde os anjos têm até medo de encostar o pé. Foi chamuscado no acordo sobre o urânio do Irã que tentou mediar com a Turquia.
Escaldado, o governo Dilma vem revelando invariável atração pela abstenção nos dilemas da Líbia e Síria. É aí que se vê melhor o contraste com nossa antiga parceira.
A diplomacia turca, conduzida pelo audacioso ministro Davutoglu, apostou tudo na Primavera Árabe. O primeiro ministro Erdogan aplica sanções à Síria, desembarca no Cairo e Trípoli, propõe o modelo turco de democracia e Estado secular.
Os turcos têm razões de sobra para isso. Esnobados pela Europa, machucados por Israel na morte de nove cidadãos na frota de Gaza, desiludidos da liderança americana, fingem dar as costas ao Ocidente e voltar às paragens onde reinou por séculos o império otomano. Não têm o que perder. Se os árabes adotam o modelo turco, aumentam o prestígio.
Se a primavera desembocar em instabilidade e perigo islamista, cresce a imprescindibilidade da Turquia graças à sua privilegiada situação geoestratégica de ponte entre Europa, Ásia, África e condição de único membro muçulmano da Aliança Atlântica desde 1952. Não partilhando de nenhum desses motivos e vantagens, faz bem o Brasil em não exagerar no ativismo.
O problema não é a abstenção, mas seus motivos. China e Rússia são autocracias vulneráveis em direitos humanos e suspeitam que mudanças na Líbia e Síria apenas favoreçam os EUA e aliados.
Apesar de democracia, a Índia tem incontáveis problemas na Caxemira, rebeliões e tensões religiosas. Quais seriam as razões brasileiras? Não deve ser o cálculo de que nossos fracos interesses e meios de ação na região aconselham a abstenção. Era assim que agíamos no Conselho da Liga das Nações onde a abstenção sistemática nas questões das minorias tornou o Brasil prescindível, desmoralizando a candidatura a um posto permanente.
Se o motivo é a interpretação restritiva do princípio da não ingerência, temos de explicar como nos situamos ante o parágrafo 139 da Declaração de Chefes de Estado na ONU em 2005.
Nesse documento, os governos reconheceram o dever, não o direito, de proteger as populações contra suas próprias autoridades em casos de genocídio, crimes de guerra, contra a humanidade e limpeza étnica.
Repudiamos a declaração que assinamos? Ou temos motivos para sustentar que ela não se aplica aos casos atuais? Ser ou não ser? Falta explicar com clareza nossas hamléticas vacilações.
FONTE: FOLHA DE S. PAULO
Nenhum comentário:
Postar um comentário