Quem esticar os olhos para o alto, de vários pontos da Zona Sul, consegue ver a Rocinha; qualquer morador dos bairros instalados no entorno da favela ouve há anos as histórias do que se passa lá. Ao mesmo tempo, sempre pareceram histórias de outro mundo, do reino dos Lulu, Bem-Te-Vi, Nem. As estatísticas mostram que a fronteira não é ilusória.
Um morador da Rocinha tem menos da metade dos anos de estudo que um da Lagoa. Pelos dados do IBGE, já com base no censo de 2010, no Flamengo e em Copacabana há 263 e 245 pessoas com mais de 65 anos para cada grupo de 100 pessoas com menos de 15 anos. No Leblon, a relação é de 164 e na Gávea é 127. Na Rocinha são apenas 13 pessoas com mais de 65 para cada 100 pessoas com menos de 15 anos. Uma população envelhecida, de um lado, e uma população espantosamente jovem, do outro. Veja a comparação entre a pirâmide etária de Copacabana e da Rocinha no blog. Parecem dois países.
Uma pesquisa sobre as favelas do Rio feita pela FGV com base no Censo de 2000, mas atualizada pela Pnad, mostra que a taxa de fecundidade de jovens de 15 a 19 anos da Rocinha é cinco vezes maior do que as da mesma idade que moram na Lagoa.
Há várias distorções e distâncias no Rio. Entre as favelas e os bairros; entre as favelas; dentro delas. A Rocinha emprega mais de 6 mil pessoas de outras áreas da cidade, é geradora de emprego. Mas ao mesmo tempo tem bolsões de pobreza, alto índice de doenças, como a tuberculose, por exemplo.
Sempre houve também diversas formas de os moradores lidarem com a realidade da autoridade que os traficantes se investiram diante da omissão do Estado. Alguns temiam, outros odiavam, uns, pragmaticamente, se curvavam a seu poder, pedindo ajuda para disputas de propriedade ou até brigas familiares.
O estado do Rio chegou lá antes da ocupação. Ruth Jurberg, coordenadora de trabalho social da Casa Civil, tem liderado uma série de trabalhos na Rocinha. Uma das pesquisas que coordenou foi sobre a economia local, as empresas que atuam lá. Mas tem sido feitos outros trabalhos, pesquisas e consultas aos moradores há cinco anos.
- O canteiro social que montamos lá funcionava com o tráfico e tudo, sem se intimidar, e em contato direto com os moradores. Capacitamos 450 moradores para fazerem o Censo habitacional e empresarial. Havia muita dúvida sobre quantos eram os moradores: são 101 mil. Fizemos o Censo Empresarial que trouxe muitas informações - disse Ruth.
A Rocinha tem uma economia forte, pelo menos três grandes bancos brasileiros estão instalados lá. Há também 6.529 empresas de empreendedores locais funcionando na favela. A pesquisa levou um ano e dois meses, de maio de 2008 a julho de 2009, trabalhando todos os dias da semana, inclusive sábado e domingo. Quase a totalidade das empresas respondeu ao questionário. Apenas 12,6% funcionam na própria casa do empreendedor. Em geral, o estabelecimento funciona em local separado. A maioria é de serviço, cuja oportunidade surgiu como a de creches, lavanderias, transporte. Elas estão distribuídas de maneira desigual: se em Barcelos há 17% das empresas, mais de mil delas; na Rua Quatro, 11,5%, mais de 700; na Curva do S há apenas duas empresas.
Noventa por cento são informais, e destas, 76,2% não querem se formalizar: 44% nunca sentiram necessidade e as outras disseram que falta capital, é muito burocrático, falta informação, os impostos são altos. Portanto, se alguém está achando que, pacificada, a Rocinha vai querer entrar na economia formal, precisa entender que primeiro é necessário convencer os empreendedores de que vale a pena; criar vantagens. A maioria (63%) tem computador e está conectada na internet. Diante da pergunta de como vai seu negócio: 71,7% responderam "estável"; 20,5%, "crescendo". Os empresários têm baixo grau de escolaridade: só 1,1% com curso superior; 48,2% têm o primeiro grau incompleto e até 5,2% se declararam analfabetos.
A economia foi encontrando seu caminho e os empreendedores foram surgindo, ou pelas oportunidades abertas ou pela necessidade criada pelo desemprego. A taxa de desemprego é mais alta nas favelas, a renda familiar é bem menor, segundo atestam estudos da Fundação Getúlio Vargas para o Instituto Pereira Passos.
A Rocinha tem uma completa simbiose com os bairros ao lado. No domingo, fui andando da Gávea ao Leblon, mas o restaurante que escolhi estava fechado para almoço. Os garçons e os cozinheiros não conseguiram ir ao trabalho.
- Todos moram na Rocinha - explicou uma das recepcionistas.
Pela simbiose e pela geografia, Rocinha e Vidigal ficam perto de Leblon, Gávea, São Conrado. Pela realidade vivida pelos moradores, até agora ficavam num reino distante.
Os helicópteros sobrevoam a área há vários dias. Ontem continuavam, mas foram mais insistentes na noite de sábado para domingo; de madrugada deram voos rasantes. Eles nos lembraram que o outro mundo do qual nos falam nos restaurantes, nas cozinhas, nos salões de beleza não é distante, e nossos destinos sempre estiveram conjugados.
FONTE: O GLOBO
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