Os democratas não devem gastar tinta e energia com sofismas, aplausos acríticos, elogios fáceis e críticas inconsequentes. O papel deles é esclarecer de que reforma política o país necessita e contribuir para fixar o melhor modo de realizá-la.
Nós, que somos democratas — de esquerda, liberais, petistas ou tucanos, socialistas, comunistas, radicais —, deveríamos promover uma convergência entre nós. Por vários motivos, mas sobretudo porque o país ganharia muito com isso.
Nessa convergência, seriam convenientes duas coisas. (1) Parar de fazer carga gratuita contra a presidente Dilma. Criticá-la, duramente sempre que for o caso, mas sem rancor e ressentimento, sem espírito revanchista e sem estatelar os olhos no processo eleitoral de 2014. (2) Trabalhar para converter a ideia de reforma política numa proposta de reforma política que seja ao mesmo tempo saneadora da República e democrática radical, ou seja, aberta à ampliação da participação popular e à sociedade civil.
A segunda coisa dá substância política à primeira, pois a crítica que se deve fazer à Presidência é a de não ter tido a ousadia de propor a reforma. Ela somente falou na necessidade da reforma, tema batido e em torno do qual os consensos não são substantivos, pois os temas podem ter múltiplas traduções e combinações. Dificultou o debate, em vez de facilitá-lo. Dilma foi tímida, pretendendo ser “agressiva” e receptiva às ruas, e transferiu o ônus e o bônus da reforma ao Congresso — justo a ele, esse amontoado de gente de baixa qualidade política, vazia de ideias e sem pegada programática. Se o Congresso quisesse fazer reforma a sério, já poderia tê-la feito. A presidente sabia disso, pois todo mundo sabe disso. Por que então transferir a ele essa missão? Por que então investir em uma consulta popular que dificilmente produzirá, por si só, resultados reformadores?
Em minha opinião, porque a Presidência e seu partido não sabem que reforma propor. Não têm consensos a respeito. Terminaram assim por socializar a dúvida e deixar um grito suspenso no ar: para onde devemos ir?
Mas o pacote está aí, no meio da sala, como um bode. E não deveria caber aos democratas gastar tinta e energia com sofismas, aplausos acríticos, elogios fáceis e críticas inconsequentes. O papel deles é de dizer e de submeter à consulta popular, se for o caso, qual a reforma de que o país necessita.
Sei bem que alguns dirão: “Ora, isso é autoritarismo iluminista. Quem são os democratas para se arvorarem em intérpretes da vontade popular?”. Cá do meu canto, eu responderia: os democratas são aqueles que lutam com a população para que a democracia se aprofunde e ganhe consistência. Nessa condição, não só podem, como devem, dizer o que pensam. Se forem persuasivos e corretos, serão ouvidos. Se não forem, ninguém prestará atenção neles.
O que não podem é ficar em silêncio, assistindo à desagregação do processo político e sem contribuir para que se aproveite de forma positiva e democrática esse momento excepcional que vive a sociedade.
Os democratas são aqueles que querem, sempre, fortalecer, ampliar e revitalizar a democracia. No caso do Brasil, isso hoje passa pelo reconhecimento de que o sistema existente atingiu um ponto de saturação e esgotamento. É preciso reformar a dimensão eleitoral e a partidária, e, quanto antes isso for iniciado, melhor para todos.
Ninguém, nenhum partido, nenhum político, sai bem na foto depois dos protestos sociais. Todos perderam, e por isso todos terão de reagir. Irão se desgastar mais se ficarem atirando uns contra os outros, ou repetindo essa lenga-lenga primitiva de direita vs. esquerda, PT vs. PSDB.
A eleitoralização do debate é o pior inimigo dos democratas. O governo Dilma é o governo constitucional, e o melhor para todos é que ele funcione e seja capaz de administrar a crise.
Se os operadores políticos de Brasília estivessem valorizando a urgência da reforma, a discussão ampliada da reforma política já estaria a ser feita. A partir de alguma proposta. A ideia de “discutir a reforma política” só tem como progredir e empolgar se vier acompanhada de uma proposta de reforma, de uma ideia que apresente os pontos que poderão produzir uma política e uma democracia de melhor qualidade. Chamar a população para discutir “tudo” ou quase tudo, sem ter uma proposição de referência, é não sair do lugar.
A proposição da reforma política é correta, mas a forma como ela foi apresentada, não. O governo federal deveria ter aproveitado a força dos protestos para se reformar a si próprio, ou seja, para rever sua organização, suas opções, para livrar-se da sua banda podre e reformular a base parlamentar em que se apoia. Deveria ter feito uma proposta concreta de reforma, não um chamamento para que se discuta a reforma. Sem uma ideia de reforma que seja saneadora da República e democrática radical, ou seja, aberta à ampliação da participação popular e à sociedade civil, não vejo como se discutir reforma política e promover mudanças efetivas no sistema político.
Creio mesmo que a ausência dessa iniciativa reformadora explícita na reação governamental está na raiz das dificuldades que a proposta presidencial do plebiscito encontrou para ser assimilada, assim como dos desencontros horrorosos que se observam entre os operadores governamentais de Brasília.
Não é verdade que o povo não possa deliberar sobre a reforma política por não ter inteligência necessária para examinar temas técnicos complexos. Tem muita inteligência, sobretudo do tipo cívico, político, que nesse terreno é mais importante que a inteligência técnica. Tal como a presidente Dilma, os democratas acreditam na inteligência do povo brasileiro. Mas é menos verdade ainda a ideia de que, por ter essa inteligência, o povo pode decidir sem discussão. Se a intenção é fazer uma consulta popular que embase e dê o espirito de uma reforma democrática, o tempo é a variável-chave. Não sendo bem calculado, não haverá discussão, mas apoio ou oposição. Um tema como “lista fechada” ou “voto distrital” será decidido por palmas ou vaias, ao sabor da força sedutora de lideranças, campanhas e discursos. Por ter inteligência, o povo quer espaços de reflexão, diálogo e debate democrático. Tais espaços são o seu oxigênio.
Uma reforma política feita com participação popular é no momento atual a joia da coroa. Não se deveria estragá-la.
Nesse quadro, dá para compreender a má vontade do Congresso (e da base aliada antes de tudo) com a iniciativa da Presidência. Ela foi interpretada como uma tentativa de jogar a sociedade contra os parlamentares, pondo a nu a sua inoperância e a sua falta de compromisso. Foi uma interpretação correta daquilo que talvez seja a única virtude da ideia presidencial. As ruas nos ajudaram a entender que o país não tem como seguir em frente com o Congresso que está aí, com seu estilo de fazer política, com sua cultura. Ele não serve mais para organizar a política. Nem ele nem seus integrantes, parlamentares e partidos. As eleições regulares das últimas quatro décadas não tiveram força para democratizar o Congresso. E isso porque as eleições são corrompidas demais e porque os políticos — todos eles, de todos os partidos — se entregaram passivamente às regras eleitorais vigentes, especialmente às informais. Ao monopolizarem dessa forma a representação, contribuíram para desqualificá-la e por afastá-la da população, que não se vê neles.
A Presidência perdeu uma oportunidade de ouro: poderia ter se apoiado nos protestos para se autorreformar e imprimir ao governo outra orientação: ajustar o ministério, diminuir o peso que a banda podre da base aliada tem nele, escolher novos parceiros, reformular suas políticas e seus programas. Mostrar-se sensível às ruas seria fazer algo assim. Aí faria sentido privilegiar a reforma política. Ela tinha a faca e o queijo na mão. Mas optou por não usar a faca. Ainda poderá vir a usá-la, mas talvez o momento ótimo tenha sido perdido.
Apresentada de forma solta, sem outras ações governamentais e sem concatenação temática, a discussão da reforma empacou. Hoje corre o risco de perder vigor, morrer na praia, por pura falta de eixo e identidade. Só será salva se for projetada num prazo mais longo, se a cidadania ativa se dispuser a dar tratamento preferencial a ela e se as ruas voltarem a fervilhar.
Pressionada pelas ruas — que protestaram contra tudo, não contra ela em particular —, Dilma tentou direcionar a pressão para um terreno mais favorável. Acertou ao chamar o Congresso para a briga, transferindo para ele a culpa pela ausência de reforma. Pôs o bode na sala. O problema é que ela depende do Congresso para governar e será obrigada a contemporizar com ele. Se nada for feito, será retaliada pelo Congresso.
Os democratas estão aí. Não são da situação nem da oposição: estão de ambos os lados. Estão nas ruas e nos palácios. Não aceitam a baixaria das oposições, sua indigência teórica, sua mesquinhez e seu completo alheamento em relação às exigências da democracia. Também não aceitam a autovitimização e a arrogância do PT e do governo, sua recusa de assumir a responsabilidade pela coordenação política do país, sua paralisia propositiva.
A hora é dos democratas. Impulsionados pelas ruas, precisam fazer ouvir sua voz e demarcar com maior clareza sua presença.
Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.
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