segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Feios, sujos e malvados - Marcos Nobre

- Valor Econômico

• Anistia foi enterrada por não garantir salvação geral

Enquanto isso, na paróquia política brasileira, o susto da semana não foi a demissão de Geddel Vieira Lima. O verdadeiro susto veio com o vídeo divulgado pelo deputado Rogério Rosso, líder do PSD na Câmara, no mesmo dia da demissão do ministro da Secretaria de Governo, em que disse: "Caso o Congresso Nacional venha a aprovar qualquer tipo de anistia, não só o caixa dois, mas qualquer outro crime, o presidente Temer vetará imediatamente". No vídeo, Rosso diz ter recebido de Temer expressa autorização para levar a decisão ao conhecimento da sociedade. Foi colocado na posição de porta-voz da Presidência. Mais um. Ao confirmar a informação em entrevista ao Jornal Nacional no dia seguinte, Rosso criou um fato consumado.

A confusão causada foi tamanha que Temer teve de convocar uma entrevista coletiva ontem, em pleno domingo, para dizer que a posição contrária a qualquer anistia tinha sido um "ajustamento institucional" entre o Executivo e o Legislativo e não uma confrontação do Congresso pelo presidente. O susto não vem da súbita mudança de posição de Temer em relação ao que vinha dizendo sobre o assunto até o dia anterior à demissão de Geddel. Não é novidade o governo mudar de posição feito biruta de aeroporto. O espantoso é Temer ter enterrado um acordão de anistia que vinha sendo negociado desde julho no Congresso. O tema foi praticamente pauta única da política oficial nas últimas semanas e era visto como derradeira tábua de salvação para a avalanche de planilhas de empreiteiras que virá.

Duas interpretações tinham surgido para a decisão de demitir Geddel que podem ser adaptadas para o enterro do acordão de anistia. Sentindo-se efetivamente ameaçado pelo fantasma do impeachment, Temer resolveu contra-atacar com uma atitude capaz de contrabalançar o estrago. Colocar-se como muralha da moralidade política deve ter parecido a única saída disponível para tirar do seu colo a imagem de agenciador de facilidades miúdas para amigos ministros.

Só que a atitude tem como consequência a instauração de um padrão quase automático de demissão de ministros em situação Geddel. A lição do episódio é: se quiser resistir à pressão pela demissão de ministro encrencado, quem vai entrar na linha de tiro é o próprio Temer. Esse padrão traz uma instabilidade crônica para o governo. Dada a composição da equipe e da base de apoio parlamentar, muito pouca gente pode se sentir segura na cadeira. O horizonte político de planejamento ministerial fica rebaixado à manhã da próxima leva de vazamentos, prisões, apreensões e conduções coercitivas.

A segunda interpretação que surgiu para a decisão de demitir o ministro da Secretaria Geral tem que ver com a sucessão na presidência da Câmara. Essa interpretação diz que, sendo inevitável a demissão, a abertura da posição de ministro da Secretaria de Governo permitiria ao menos uma acomodação entre as duas facções que disputam a presidência da Câmara, os neogoverno de DEM, PSDB, PPS e PSB, de um lado, e o chamado Centrão, de outro. Não por acaso, foi o candidato do Centrão, Rogério Rosso, derrotado por Rodrigo Maia na última eleição para a presidência da Câmara, o escolhido para anunciar em primeira mão o veto presidencial a qualquer anistia.

A jogada que permitiu a eleição de Rodrigo Maia dependeu de um efeito surpresa que não pode mais ser repetido. Basicamente, Maia pescou votos na oposição e negociou a defecção do PR do Centrão. Os votos pescados na oposição continuam os mesmos, se é que não diminuíram. O PR foi recebido de volta pelo Centrão como o filho pródigo e jurou não mais deixar o ninho. Se o Centrão conseguir permanecer unido, como parece que vai acontecer, será o PMDB a decidir a eleição para a presidência da Câmara. E, no momento, a bancada do PMDB parece pender para a candidatura do Centrão.

É o momento em que essa linha de interpretação pode servir para explicar a demissão de Geddel, mas não o enterro do acordão da anistia. Para adquirir o peso que de fato tem, a questão da presidência da Câmara precisa ser combinada com uma novidade: a recusa por parte relevante do sistema político de uma anistia que não salve todos os potenciais envolvidos. Porque a proposta de anistiar crimes pregressos com a simples reprimenda de nome fantasia "caixa dois" salva apenas uma parte dos encrencados, introduzindo uma estratificação entre os ameaçados pela Lava-Jato e suas filiais.

Apenas uma parte dos potenciais atingidos pode ter alguma garantia de conseguir se safar mediante a redução de seus malfeitos a "recursos não contabilizados". São os "feios", aqueles que estão nas planilhas de doações, mas em relação aos quais não se consegue estabelecer ligação direta entre recursos recebidos e propinas. Cálculos como esse são mais do que imprecisos, mas uma contabilidade interessada diz que até metade dos implicados poderia livrar a cara com uma anistia nesses moldes. O que significa, entretanto, que a medida seria meramente paliativa para uma outra metade dos implicados, para aqueles que se encontram nos estratos dos "sujos" e dos "malvados", de quem deixou digitais pelo caminho e de quem dirigiu o show.

Esse novo aspecto introduz um elemento de dramaticidade ainda maior ao salve-se quem puder geral que se instalou no sistema político. A anistia tal como arquitetada traria um custo altíssimo para quem votasse a favor sem de fato garantir proteção para todos. O enterro do acordão da anistia veio não apenas para tentar faturar, mesmo que por um curto período de tempo, uma contramedida de aparência moralizadora. Estabeleceu de uma vez por todas que não existe salvação que não seja geral.

Não existindo salvação geral, virá o mais típico abraço de afogados no seu lugar. Seja como for, fica claro uma vez mais que é o Centrão que dá as cartas, que esse bloco é, ontem como hoje, o autêntico pilar de sustentação do governo Temer. Tudo somado, o número mágico que barra o impeachment continua a ser aquele da votação recebida por Rogério Rosso no segundo turno da eleição para a presidência da Câmara: 171.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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