- Valor Econômico
Não há outra solução para a holding, a não a ser a desestatização
Há uma série de decisões e providências a serem tomadas antes da ambiciosa privatização da Eletrobras, anunciada pelo governo federal na semana passada. Por enquanto, existe apenas um consenso entre os atores envolvidos nas discussões: a direção escolhida, isto é, a convicção de que a desestatização é a única solução possível para um problema de grandes proporções - a União perdeu a capacidade de investir na companhia, a maior geradora do país, e as finanças da holding estão sangrando graças a equívocos cometidos em série nos últimos anos.
A privatização só será possível graças à chamada "descotização", palavrão que significa acabar com o sistema de cotas criado pelo governo Dilma Rousseff em 2012, por meio da Medida Provisória 579. O objetivo de Dilma era reduzir o preço de energia das usinas cujos investimentos já tinham sido amortizados e os prazos de concessão se aproximavam do fim. A ideia era renovar esses prazos por 30 anos, desde que o preço da tarifa caísse para algo em torno de R$ 30 o megawatt-hora - na ocasião, estava acima de R$ 100.
Na prática, o preço médio das usinas amortizadas que entraram no sistema de cotas ficou em R$ 50 o megawatt-hora - pelos contratos, a tarifa é corrigida pela inflação. O problema é que, quando as usinas não conseguem gerar a energia contratada pelos distribuidores e consumidores, compram energia cara e poluente das usinas termelétricas e o custo é repassado aos consumidores. O risco hidrológico é integralmente assumido pelos consumidores.
No sistema criado pelo governo anterior, a energia produzida pelas hidrelétricas foi transformada em cotas para as distribuidoras do mercado regulado. Como não houve adesão de atores importantes do setor elétrico, o governo Dilma impôs a medida à Eletrobras, que é a holding das empresas federais. Acionista minoritário da estatal, com 5% das ações, o fundo Radar 3G, de Jorge Paulo Lemann e seus sócios, estima que a holding perdeu R$ 20 bilhões em decorrência da MP 579.
Para conseguir absorver os custos impostos pelo sistema de cotas, a Eletrobras teria que cortar suas despesas de forma colossal ao longo dos anos. Evidentemente, não fez isso porque, no Brasil, estatal é vista como empresa que pode contratar funcionários sem limite e esses, embora a lei não diga isso, não podem ser demitidos.
Sabe-se, por exemplo, que as seis distribuidoras do Norte e Nordeste que faliram possuem em seus quadros funcionários muito além da necessidade. É tanta gente que o simples enxugamento das folhas de pagamento tornará viável a gestão financeira das empresas. Mas o prejuízo dos investimentos bilionários realizados nas distribuidoras ficará com a Eletrobras - o gasto teria sido bem menor se a holding pudesse ter demitido parte do pessoal.
O Radar 3G calcula que, em 15 anos, somadas as perdas com a MP 579, as taxas de retorno negativas de empreendimentos gigantescos como as usinas de Belo Monte e as do rio Madeira, os prejuízos das distribuidoras e os custos de ineficiência, a Eletrobras acumulará perda de R$ 225 bilhões. A maior parte dessa conta teria que ser coberta pela acionista majoritário, hoje a União.
Com a "descotização", as geradoras ficarão liberadas para vender energia a preços de mercado e prazos determinados, bem mais curtos que os 30 anos da regra anterior. As concessões dessas usinas, por sua vez, serão renovadas novamente por 30 anos, rendendo um bom dinheiro, em tese, ao Tesouro - estima-se algo em torno de R$ 30 bilhões. Portanto, num modelo de desestatização em que a participação da União no capital da Eletrobras é diluída até a perda do controle da holding, a renovação das concessões, graças à "descotização", deverá render mais dinheiro do que renderia a privatização da companhia - que está virtualmente quebrada - por meio de leilão público.
Mas, há obstáculos a serem superados. Não se tem consenso, por exemplo, sobre a destinação dos ganhos decorrentes do fim das cotas. Na consulta pública realizada sobre o tema, a resposta foi que, sim, o Tesouro deveria receber recursos, mas limitados a um terço do total, sendo o restante distribuído entre a própria Eletrobras e o setor elétrico. A questão é: por que a holding deve ficar com um terço desse dinheiro? Para incentivar os investidores privados a se interessarem pelo papel da empresa?
O governo tem consciência de que a Eletrobras, apesar do controle estatal, tem acionistas privados e, portanto, as decisões sobre seu futuro não podem mais ser monocráticas. O que um acionista minoritário como o Radar 3G fez, ao projetar estimativas de perda a partir da situação atual da companhia, foi chamar a atenção para o fato de que ela não pertence apenas ao Tesouro. "A lógica de privatizar e todo mundo sair ganhando pressupõe a 'descotização'", observa um técnico do governo.
Ainda não há consenso também sobre a renovação das concessões das usinas, se deve ser feita por meio de leilão ou não. Há mais de uma possibilidade na mesa. "Em vez de fazer o leilão [de renovação das concessões], a Eletrobras pagaria à União a renovação das usinas, incorporando o um terço [da descotização] ao longo do tempo", defende um participante da modelagem.
Outro tema é Itaipu. Ninguém em Brasília sabe afirmar com 100% de certeza a quem pertence a usina, se à Eletrobras ou à União. Além disso, a geradora é uma binacional dos governos do Brasil e do Paraguai. A tendência é que esse ativo não seja privatizado num primeiro momento.
A Eletronuclear, por sua vez, representa um peso para a Eletrobras. Já foi investida a incrível soma de R$ 8,5 bilhões na construção da usina de Angra 3. Se for decidida a interrupção da construção, a holding terá que enterrar mais R$ 1,5 bilhão na usina. Se resolver concluir o projeto, será obrigada a desembolsar algo entre R$ 15 bilhões e R$ 20 bilhões. Por razões óbvias, esta fábrica de prejuízos ficará de fora da privatização.
A princípio, no modelo de venda da Eletrobras por meio de diluição do capital, os acionistas teriam que integralizar valores vultosos, para também não serem diluídos e, assim, poderem assumir o controle da empresa. O governo alega que essa é uma questão de preço, e este será definido pela superação das divergências mencionadas e, consequentemente, pelas decisões a serem tomas até o momento da diluição.
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