O confuso voto da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, no julgamento sobre a necessidade de aval do Legislativo para a imposição de medidas cautelares contra parlamentares por parte do STF reflete, antes de mais nada, o absurdo desse debate na mais alta Corte do País. O que havia começado como uma inacreditável afronta à Constituição só podia terminar, no voto decisivo, em melancólico tartamudear de teses excêntricas, que igualmente não encontram amparo em lugar nenhum do texto constitucional. Vai mal a nação cuja Suprema Corte, a propósito de limpar o país dos corruptos, se permite cogitar, com ar pomposo, o atropelo do Estado Democrático de Direito e das prerrogativas exclusivas de outro Poder, sem nada a sustentar tal conduta senão o voluntarismo militante de ministros que se julgam com o poder de acabar com todo o mal da política.
O voto de Cármen Lúcia decidiu a votação de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que, na prática, terá efeito direto sobre o caso do senador Aécio Neves (PSDB-MG). Como se sabe, o Supremo havia ordenado o afastamento do senador mineiro de seu mandato e ainda lhe impôs restrições de movimento, como o recolhimento domiciliar noturno, e de direitos políticos, em razão de suspeitas de corrupção e de obstrução de Justiça. Essa decisão causou natural reação do Senado, que julgou, com razão, que suas prerrogativas haviam sido subtraídas pelo Supremo – afinal, como reza claramente a Constituição, nenhuma medida legal pode ser tomada contra parlamentares sem o aval do Legislativo.
Essa imunidade não é gratuita ou indesejada. Trata-se de uma proteção da vontade do povo expressa pelo voto que elege seus representantes. Por essa razão, a Constituição é cristalina ao franquear somente ao Legislativo, formado por representantes eleitos pelo voto direto, o poder de autorizar processos contra parlamentares. Esse poder é tão amplo que permite ao Legislativo suspender processos e até mesmo reverter prisão em flagrante por crime inafiançável. Isso nada tem a ver com impunidade. É, antes, garantia democrática contra o arbítrio.
Essa abrangência das prerrogativas atribuídas pelo constituinte ao Legislativo é que torna ainda mais estapafúrdia a decisão do Supremo de estabelecer, como “alternativas à prisão”, as tais medidas cautelares contra Aécio e pretender que essa decisão não precisaria passar pelo crivo do Senado. Ora, é evidente que, se cabe ao Senado decidir até sobre prisão em flagrante, por que não caberia no caso de uma medida cautelar?
Parece, contudo, que o texto constitucional é, para alguns ministros do Supremo, uma espécie de obra aberta, a ser emendada conforme crenças subjetivas, ideologias abstrusas e peculiares programas políticos. Aquela Corte, nesses tempos esquisitos, chega a se confundir com uma assembleia constituinte, sem ter um único voto popular a sustentar essa pretensão.
Nestes tempos em que o alarido das redes sociais contra a corrupção parece se sobrepor à razão e à leitura serena da lei, ganham pontos com a torcida aqueles que se mostram mais dispostos a enfrentar, mesmo ao preço da suspensão de garantias fundamentais, o “pacto oligárquico que se formou, no Brasil, de saque ao Estado”, como explicou o ministro Luís Roberto Barroso ao sustentar seu voto a favor do afastamento de Aécio Neves. É em nome dessa guerra que a Procuradoria-Geral da República oferece denúncias baseadas apenas em delações e em flagrantes armados e o Supremo se permite tratar como criminoso já condenado um parlamentar que ainda nem foi formalmente acusado. Melhor nem pensar até onde pode ir tamanho desvario.
Na votação de anteontem no Supremo, prevaleceu a intenção de colocar panos quentes na relação com o Senado, evitando um confronto que poderia adicionar tensão entre os Poderes. Resultado: o Supremo, principal responsável pela guarda constitucional, converteu-se definitivamente em fator de grande insegurança jurídica. Afinal, se o que está escrito na Constituição não vale para vários ministros daquela Corte, salve-se quem puder.
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