- O Globo
Seus melhores filmes eram sempre afirmações de sua curiosidade, de sua coragem, de sua capacidade de recomeçar
Conheci Bernardo Bertolucci em 1964, quando tínhamos 23 anos de idade, no primeiro Festival de Cannes a que os dois estivemos presentes. Tínhamos ambos filmes na Semana da Crítica, manifestação para obras de estreia, no mesmo festival em que “Vidas secas” e “Deus e o diabo na terra do sol” competiam pela Palma de Ouro e faziam o Cinema Novo brasileiro se tornar conhecido no mundo inteiro.
Quando vi “Prima della revoluzione” (Antes da revolução), o filme de Bernardo na Semana da Crítica, descobri um cinema que não era muito diferente do nosso. O filme e seu diretor se consagraram ali, como uma dessas jovens coqueluches que os grandes festivais costumam festejar, celebrando as novidades cinematográficas que passam a ser “propriedade” de seus descobridores. No caso, a descoberta era dos jornalistas franceses, como os inovadores dos Cahiers du Cinéma, uma das origens da Nouvelle Vague, o novo evangelho do cinema sem as regras exaustas dos estúdios de Hollywood.
Em meio à última e morna sessão dos participantes na Semana da Crítica, me levantei na plateia para saudar “Antes da revolução”, excelente exemplo do que todos nós queríamos do cinema naquele momento. Houve quem reagisse a meu entusiasmo e à adesão de Glauber, Bernardo e Gianni Amico, cineasta italiano que se tornaria o maior cultor do cinema brasileiro na Europa. Até que o crítico francês Louis Marcorelles, um dos responsáveis pelo evento, encerrou o debate sintetizando o que pensávamos e anunciando com exagero o nascimento, naquela sala, de um novo pensamento cinematográfico, ao mesmo tempo europeu e sul-americano.
Quando a reunião começou a se dispersar em relativo silêncio, Gianni fechou o perturbado dia repetindo várias vezes e em voz alta o que dizia no filme de Bertolucci, onde fizera uma participação especial: “No se puó vivere senza Rossellini!” (Não se pode viver sem Rosselini). Gargalhadas e aplausos mostraram quem tinha razão.
Pelo resto da vida, em Roma ou no Rio, em qualquer festival do mundo onde nos encontrássemos, minhas relações com Bernardo eram cada vez mais afetuosas e menos “didáticas”. Ele se tornaria uma grande estrela do cinema mundial, desde “O último tango em Paris”, e ganharia nada menos do que nove Oscars, por “O último imperador”. Em 1981, eu era do júri de Cannes e seu filme “tragédia de um homem ridículo” estava em competição. Bernardo não me pediu nada, em momento algum. E a grande decepção geral com seu filme me impedia de propor aos jurados mais do que um prêmio de melhor ator para Ugo Tognazzi. Na noite da premiação, Bernardo me agradeceu com lágrimas nos olhos, como se o júri tivesse prestado, com o prêmio para Tognazzi, seu ator e um de seus ídolos, uma franca homenagem ao cinema italiano.
Seus melhores filmes eram sempre afirmações de sua curiosidade, de sua coragem, de sua capacidade de recomeçar sempre sem descanso. De seu enorme prazer em descobrir outros lugares e outras vidas, mesmo que em grande sofrimento. Cada vez que nos víamos, eu lhe perguntava se, em seu filme mais recente, havia deixado a porta aberta. É que ele me havia contado que, quando conhecera Jean Renoir, o mestre francês lhe dissera que todo filme tinha que ser filmado com a porta sempre aberta, para que pudesse entrar o que estivesse por ali, sem ter sido previsto.
Há uns sete anos, com lancinantes dores nas costas, Bernardo se fez operar e, depois da cirurgia, acabou condenado para sempre a uma cadeira de rodas. A última vez que o vi, em maio de 2013, ele era homenageado, ainda em Cannes, com a exibição especial de “Io e te” (Eu e você), o único filme que fez depois do acidente cirúrgico. Ele, eu e minha mulher Renata tivemos uma conversa curta e sombria, na própria sala de projeção do festival. Renata elogiou muito “Eu e você”, que lhe havia emocionado tanto. Ele não disse nada, mas acho que gostou do comentário dela. Quando, qual um idiota, lhe perguntei como estava se sentindo, Bernardo me olhou de banda, deu um sorrisinho sem graça e me disse: “Já pensei até em morrer”.
Um artista incomparável, um dos maiores na grande tradição do cinema italiano moderno, Bernardo Bertolucci vai nos fazer muita falta. A nós, a nossos olhos, ouvidos e corações. Ao cinema e ao mundo.
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