- Valor Econômico
Presidente ainda não corre risco de impeachment
Discutir na América Latina o impeachment de um presidente da República a partir de algum crime de responsabilidade que tenha sido cometido é um equívoco, como a história é pródiga em mostrar, seja na Venezuela (1993), Equador (1997), Paraguai (2012), Guatemala (2016) e Brasil (1992 e 2016). É condição necessária, sem dúvida, mas não suficiente.
Se a queda de fato está madura, arruma-se qualquer pretexto. O afastamento de um chefe de Estado é e sempre foi uma decisão política. Guarda, de jurídico, apenas a forma. Trata-se de um tribunal onde já se entra condenado, um caldo que se serve quando está bem grosso. Para a derrubada de um presidente, há outras variáveis mais importantes que os seus pecados. Isoladamente, nenhuma é motivo para um impeachment. Combinadas, o tornam muito provável.
A mais fundamental é a perda de popularidade. Um presidente isolado da sociedade corre risco. Cientistas políticos como Carlos Melo (Insper) apostam, por exemplo, que o limite do perigo é cruzado quando o governante não consegue somar mais do que 20% de bom ou ótimo. Queda abaixo deste patamar gera onda na opinião pública e aumenta muito o custo da negociação política. Bolsonaro está com 32%, segundo o último Ibope.
Sem entrar no mérito de ser ou não uma estratégia deliberada, as boçalidades vis declaradas pelo presidente nas últimas semanas despertam os instintos mais primitivos de uma faixa do eleitorado, que se alimenta do ódio à razão. O fanático ou agita ou dorme, com ele não há argumento possível. Isso vale para os dois extremos do espectro ideológico e faz com que as ruas não sejam dominadas por nenhum dos polos. Em um ambiente marcado pela radicalização, o patamar abaixo do qual a impopularidade é letal diminuiu.
Um presidente também fica com a governabilidade em xeque quando a economia trava ou retrocede. São sete anos em que a economia drena as energias do governo. Não há crescimento consistente no Brasil desde 2012, mas o momento não é de implosão, ou não teríamos uma taxa Selic de 6%, com bolsa em alta.
Algum sinal de alerta foi ligado no Palácio do Planalto para providenciar um aditivo. A nova destinação criada no mês passado para o Fundo de Garantia mostra a intenção de ministrar um cuidado paliativo para manter os segmentos urbanos quietos, enquanto a retomada não vêm.
Em relação à Faria Lima e ao Leblon, ainda se vive das expectativas. Acredita-se no poder sinérgico de uma agenda de privatizações e ajuste fiscal, por meio de reforma da Previdência e reforma tributária. Não são poucos os que alardeiam que há uma fila de investidores internacionais para despejar dinheiro no Brasil, derrubar o dólar e levar a bolsa para mais de 200 mil pontos.
Minoria parlamentar do presidente é outro combustível para um impeachment presidencial. Bolsonaro é o primeiro governante do Brasil a não ter maioria formal no Congresso desde Collor. Dilma tinha, mas a perdeu ao não conseguir desarmar a costura para a eleição de Eduardo Cunha à presidência da Câmara.
Uma aliança entre os partidos do centrão, o PSDB e a oposição de esquerda poderia derrubar Bolsonaro, mas por ora não há corrente alguma a ligar estas pontas. Tucanos e esquerdistas não conseguem se entender nem internamente, o que dirá um com o outro. Resta ao centrão tentar costurar a sua agenda própria no Congresso e tentar de quando em quando estabelecer um pacto de não agressão com o Executivo. Bolsonaro atira em vários inimigos, mas não se forja uma frente contra si.
Um vice-presidente ambicioso pode exercer o protagonismo essencial para construir esta conjura. Não parece ser o caso, entretanto, de Hamilton Mourão, enquadrado por Bolsonaro durante a ofensiva contra a ala militar do Executivo, que culminou na demissão de Santos Cruz do Ministério, em junho.
Um chefe de Estado também pode cair quando rompe o equilíbrio entre os três Poderes e se torna uma ameaça à institucionalidade. É uma linha divisória que, uma vez transposta, leva à ditadura ou ao colapso, uma espécie de tudo ou nada.
Bolsonaro cruzou este limite? É seguro apenas afirmar que ele anda na fronteira. Ele exerce o poder da forma mais autoritária possível que a lei lhe assiste, como demonstra a troca ontem dos integrantes da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, mas há uma considerável distância entre sua palavra e as ações concretas.
Onde está a transferência da embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém? A retirada dos radares das estradas? O fim da Ancine? Angra dos Reis transformada em Cancún? A revisão das indenizações a familiares de vítimas do regime militar? A liberdade para a compra de armas? O próprio destrambelhamento com que Bolsonaro entrou nestes temas prejudicou seu andamento, como o episódio das armas deixou evidente.
Tudo de uma maneira ou de outra termina matizado pelo Legislativo ou pelo Judiciário. Como o próprio presidente admitiu, ele tem muito mais capacidade para destruir normas de civilidade, garantias sociais, políticas públicas, espaços de convivências do que de emparedar os demais poderes a um ponto que os leve a agir contra o Executivo. Emparedar envolve construção, o que não é a especialidade presidencial. Recorde-se o que Bolsonaro disse em Washington, quando se reuniu com lideranças conservadoras dos Estados Unidos, em março deste ano: "o Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa, desfazer muita coisa".
De cada um dos fatores que desencadeiam um impeachment, Bolsonaro colhe o seu quinhão, mas a soma não dá, ao menos ainda, a potência necessária para dar início a um processo de queda. O presidente, contudo, esboça o croqui de um detonador. Declarações como as que fez contra o pai do presidente da OAB assustam mesmo articuladores moderados do Congresso, aqueles que estão envolvidos em uma agenda econômica favorável ao mercado. Intramuros, o que comentam é que Bolsonaro já cumpriu seu papel na história, que foi o de expulsar a esquerda do poder. O populismo incomoda.
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