O Globo
Em Brasília, Lula dá demonstrações de volta
à normalidade, no mesmo dia em que o país perde Gal Costa, e Defesa divulga seu
relatório malicioso sobre as urnas
O presidente eleito Lula foi a Brasília e
ocupou todos os espaços políticos visíveis. Falou de volta à normalidade e em
diálogo com as instituições. Depois de quatro anos de conflitos, ameaças e
agressões verbais do presidente Bolsonaro contra as instituições,
principalmente o Judiciário, a palavra “normalidade” soou muito bem. Lula
encontrou os presidentes da Câmara e do Senado, foi ao STF, ao TSE e falou aos
jornalistas. Tudo conforme o esperado de um presidente eleito, mas parecia
novidade. Foi dia de brilho na política, de dor, na cultura, de fiasco dos
generais.
Tente esquecer em que ano estamos. É 2022 quase no fim, mas por um momento parecia meio século atrás. Ainda há rumores nos quartéis como se fosse admissível que tenhamos que passar por isso a essa altura. Com a morte da Gal, a imensidão da perda, a voz cristalina de afinação perfeita, pareceu ainda mais inaceitável o ponto desafinado do dia: a espera do relatório da Defesa sobre as urnas. Gal, no tempo em que os militares nos impunham o terror, era luz e encantamento, era conforto e desforra.
“Com minhas calças vermelhas, meu casaco de
general, cheio de anéis, eu vou descendo por todas as ruas, até tomar aquele
velho navio”. Gal era puro atrevimento na atitude e na voz que derrotava a
guitarra. Isso era muito, era o que precisávamos.
O Ministério da Defesa foi ambíguo como eu
tinha dito que seria. E foi pusilânime. Em seu relatório disse que não
investigou crime eleitoral. Como se tivesse essa prerrogativa. Mas insinuou,
deixou pontas no ar, exatamente como foi determinado pelo presidente Bolsonaro
que fizesse. Falou em um “relevante risco à segurança do processo” e em que
“não é possível afirmar que o sistema eletrônico de votação está isento de
eventual código malicioso”. O relatório é malicioso. Nada encontrou na verdade,
mas não podia dizer isso. “Oh, sim, eu estou tão cansado”.
– As urnas eletrônicas são um orgulho
nacional. A eleição acaba às cinco horas e três horas depois já se sabe quem
foi eleito para deputado, senador, governador, presidente — disse Lula numa
entrevista com um pedestal de microfones organizados e gritaria de perguntas.
Tudo normal.
As negociações políticas e a procura de
soluções técnicas para os imensos problemas do país continuaram. A PEC de
aumento de gastos continua sendo a solução com mais apoio. Uma nova ideia é
tirar toda a transferência de renda para os pobres de dentro do teto, para
abrir espaço para todas as outras despesas que não podem deixar de ser feitas.
A menos, como disse o deputado Reginaldo Lopes, líder do PT, que o Brasil
continue a achar normal não dar merenda para crianças, não ter remédio na
farmácia popular, universidades não pagarem conta de luz. “Tudo em volta está
deserto, tudo certo. Tudo certo como dois e dois são cinco”.
O dia de ontem foi de chorar, rir e ter
raiva. Em Brasília, o triunfo da normalidade. A política substitui os gritos e
as ameaças pelas conversas para o convencimento. Lula disse que vai tentar
convencer que as suas propostas são as melhores, e vai negociar com quem foi
eleito, não apenas com quem gosta. Em todo o Brasil foi dia de chorar uma
mulher que marcou o tempo e a vida de cada um. Tímida e espalhafatosa,
irritação na cara dos caretas.
Gil aos prantos no Estúdio i, de Andréia
Sadi, fez a definição perfeita do momento mágico em que todos eles brotaram
para o Brasil com sua explosão de talento. “Ela apareceu ali, quando eu
apareci, Caetano apareceu, nós todos nos aparecemos para todos nós. Ali em
Salvador. Tudo por causa de João, por causa da Bossa Nova. E nos encontramos
todos naquele encantamento pela música nova do Brasil”.
O Brasil parece estar voltando de um grande
mergulho em um tempo em que era possível a presidência não dar qualquer palavra
de consolo quando o Brasil perdeu o insuperável João Gilberto. “Respeito muito
minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada, inscrevo, assim, minhas palavras
na voz de uma mulher sagrada”.
Caetano compôs para ela a vida inteira, e
ontem, aos prantos declamava por ela. “Minha voz, minha vida. Meu segredo e
minha revelação. Voz que é menos minha que da canção”.
Dia estranho, o de ontem. O alívio da
normalidade, a tristeza da perda imensa. E os militares com resmungos
crípticos, mas quem liga para eles? Não é mesmo, honey baby?
Um comentário:
Belo artigo de Míriam Leitão.
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