O Globo
Difícil compreender o que leva alguém a pôr
à venda um registro de tamanha carga afetiva para a família de Stuart Angel
Quase passaram despercebidas as duas
páginas datilografadas e velhuscas, datadas de 29 de março de 1976, que
compunham o lote número 350 do leilão Postais, Documentos, Publicações e Afins,
marcado para a terça-feira 5 de abril, no Rio de Janeiro. As folhas em questão
formavam uma “Declaração” na primeira pessoa de um oficial da Aeronáutica
brasileira. No documento, ele atesta ter participado da prisão,
interrogatórios, torturas e assassinato do preso político Stuart Angel, em
1971. O oficial declarante se identifica como Marco Aurélio Carvalho, não
declina sua patente à época, mas relata em dez parágrafos secos a sequência de
desumanização a que Stuart, de 25 anos, foi submetido no centro de tortura da
Base Aérea do Galeão.
“De acordo com a prática naquela unidade
militar”, atesta o declarante no documento, o jovem sofreu afogamentos, choques
eletromagnéticos, pau de arara. Como ainda assim se recusasse a dar a
informação exigida, “o civil foi amarrado ao para-choque de um jipe. Ali ele
foi arrastado por várias horas, sempre lhe sendo perguntado o endereço do
referido subversivo, que ele se negava a dar (...) Depois de horas nessa
situação, foi levado de novo para a cela (...)”. O médico que, segundo o
declarante, trabalhava em parceria com os torturadores garantira que Stuart
continuava em “boas condições” (leia-se, em condições de ser novamente
interrogado e torturado). Errou feio. Stuart Angel morreu naquela madrugada de
maio de 1971. Uma noite que, para a família Angel, dura até hoje.
A primeira das perguntas sem resposta levantadas pelo episódio é o que teria levado o oficial Marco Aurélio a redigir essa declaração de culpa e registrá-la em cartório no dia seguinte. Sentimento de remorso acumulado? Ainda faltavam três anos para a anistia de 1979 que permitiu o retorno dos exilados políticos e isentou para sempre os militares de prestar contas de seus crimes. Medo de ser “descoberto”? O declarante sequer existe? O texto, se apócrifo, foi criado com que intenções? Que caminhos percorreu até se tornar o lote 350 de um leilão em 2023? Em linhas gerais, o documento confirma a dolorosa carta de 1972 que Alex Polari, vizinho de cela de Stuart , endereçara a Zuzu Angel, mãe do companheiro morto. Em seis páginas manuscritas com letra miúda, Polari fizera um testemunho detalhado da prisão (que presenciou, sob escolta militar), da tortura (a que assistiu) e da morte do companheiro. “À noite, alguém foi colocado numa cela ao lado da minha. Esse alguém estava em estado precário e pude ver pelo pórtico da porta tratar-se de Stuart. Tossia a mesma tosse angustiante que ouvira toda a tarde. Distingui e também o reconheci pela voz. Três frases dele se repetiam: ‘Água’, ‘Vou morrer’, ‘Estou ficando louco’ (...)” , narrou Polari, acrescentando que dois coronéis e um enfermeiro ainda passaram pelas celas à noite. “A tosse aumentou, as frases se tornaram ininteligíveis, e depois cessaram por completo.” Stuart morrera. A História, não.
Difícil compreender o que leva alguém a
incluir num leilão um registro de tamanha carga afetiva para a família Angel e
de valor histórico para o Brasil. Até a sexta-feira, a página do leiloeiro
público Alberto Torres também anunciava para o mesmo 5 de abril a venda de uma
fotografia-ícone do cantor Ney Matogrosso (lances a partir de R$ 40), um álbum
com ilustrações de antigos uniformes do Exército Brasileiro (R$ 300), uma
apólice da Petrobras de 1956 (R$ 30). O lance mínimo para a confissão de
tortura de Stuart Angel era mais alto — R$ 800. “Trata-se de documento NÃO
OFICIAL, particular, de livre e espontânea vontade do declarante. Excelente
oportunidade para colecionismo e pesquisadores sobre um dos momentos mais
sombrios e nebulosos da história do Brasil”, informava o site.
E assim ficaria não fosse uma alma
influente e de enorme agilidade no panorama nacional entrar no negócio e
impedir tamanho horror. Ao que parece o documento agora chegará às mãos certas.
Quem entrar na página do leilão hoje verá que o lote 350 foi “retirado pelo
comitente”.
Quanto ao encontro sempre adiado das Forças
Armadas com seu histórico de tortura, esse continua marcado. Ainda em abril do
ano passado, houve um vazamento de fitas de áudio do Superior Tribunal Militar
contendo análises sobre a prática da tortura durante a ditadura. Instado a
opinar sobre o tema, o então vice-presidente da República e general quatro
estrelas (da reserva) Hamilton Mourão recorreu a um cinismo de ocasião, talvez
popular na caserna: “Os caras já morreram tudo, pô. Vai trazer os caras de
volta do túmulo?”.
O deboche diversionista do hoje senador da
República não atinge mais as famílias dos mortos e desaparecidos da ditadura.
Estão calejadas demais para doer com esse tipo de gente. É esperançar para que
um dia ainda surjam confissões verdadeiras, de torturadores reais, para o
Brasil poder avançar um quadradinho a mais no conhecimento de sua inglória
História.
2 comentários:
Pulei os trechos mais fortes...
Ainda que doa, é importante que a memória sobre o período da ditadura continue viva. Ditadura nunca mais.
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