O Estado de S. Paulo
Ao dar alcance geral a um julgamento que deveria se restringir a uma causa isolada e atípica, o STF abriu uma porteira perigosa
Todo governo, por melhor que seja, precisa
ter no seu encalço uma imprensa livre, ainda que falível. Mesmo que o
governante cultive as melhores intenções do mundo durante as 24 horas do dia,
mesmo que ele nunca esbarre num conflito de interesses, mesmo que não tenha
parentes incômodos, mesmo que esteja a um passo da santidade, a atuação de
redações independentes e críticas, mesmo que elas tropecem e errem, vai lhe
fazer bem – porque vai fazer bem à sociedade.
É o óbvio, não é? Para que uma democracia
trafegue em trilhos seguros, o poder do Estado há de ser fiscalizado pela
sociedade e, sem repórteres profissionais, nenhuma sociedade fiscaliza poder
nenhum. Estamos falando, aqui, de um princípio elementar, básico, de evidência
clamorosa, um princípio sobre o qual não deveria haver dúvidas. Não obstante,
esse ponto singelo – e mortal – não foi ainda bem compreendido por uma
considerável multidão de autoridades brasileiras.
Agora mesmo, no início do mês, o Estado foi vítima de uma medida do Poder Judiciário que restringiu indevidamente sua liberdade. O caso foi sintetizado num editorial publicado anteontem (Censura sempre à espreita, página A3). Vai aqui o resumo do resumo. No dia 6 de dezembro, o juiz José Eulálio Figueiredo de Almeida, da 8.ª Vara Cível de São Luís (MA), mandou suprimir duas reportagens deste diário que relataram de modo preciso e objetivo a concessão, pelo Ministério das Comunicações, de retransmissoras de TV a uma emissora ligada ao grupo político do titular da pasta, Juscelino Filho. Na mesma sentença, o magistrado determinou que os repórteres se retratassem por ter publicado “informações falsas” e, em tom aconselhador, ainda asseverou: “Ainda quando seja verdadeira a notícia, esta deve ser divulgada sem exageros, sem embustes, sem tendenciosidade e sem afronta”.
O sufoco durou pouco, ainda bem. Dois dias
depois, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Cristiano Zanin
restabeleceu a normalidade e devolveu a liberdade ao Estado. Desta vez foi
rápido, mas, no passado, houve episódios mais traumáticos e mais difíceis de
desfazer. Em 2009, este jornal foi proibido pelo Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) de publicar informações sobre a
Operação Boi Barrica, uma investigação policial que envolvia o empresário
Fernando Sarney, filho do ex-presidente José Sarney. Naquela ocasião, a censura
durou mais do que 48 horas: persistiu por 3.327 dias. Somente em 2018 o
ministro do STF Ricardo Lewandowski derrubou a medida. Na decisão restauradora
de direitos, ele lembrou que, em julgamento de 2009, o STF garantiu “a plena
liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de
censura prévia”. Lewandowski
lembrou, mas até hoje muitas autoridades
esquecem.
Às vezes, as autoridades descuidam da
liberdade. Em decisão recente, com nove votos a favor e apenas dois contrários,
os ministros estabeleceram que as empresas jornalísticas podem ser chamadas a
responder por declarações de entrevistados, num entendimento que não coaduna
com a melhor tradição brasileira. Segundo o jurista Ronaldo Porto Macedo
Junior, em artigo no jornal O Globo em 1.º de dezembro, foi uma decisão
“preocupante e equivocada”.
Deve-se reconhecer, como fizeram alguns
grandes diários brasileiros, que o jornalismo profissional tem o dever de
aferir, em seus procedimentos rotineiros, se as declarações das pessoas que
entrevista não atentam contra a verdade. Mas essa atitude faz parte da
deontologia da profissão, ou seja, decorre não de uma imposição estatal, mas de
um compromisso autônomo, voluntário, por meio do qual a redação independente
assegura a qualidade do que leva ao público e protege a sua própria
credibilidade. As boas redações agem assim por vontade própria, porque seguem
cânones éticos rigorosos.
Tudo muda de figura quando um poder externo à
esfera jornalística, o Judiciário, chama para si a autoridade de
responsabilizar um órgão de imprensa por afirmações de terceiros. O risco que
se abre é imenso. Como os pequenos veículos sobreviverão à avalanche de
processos que certamente virão? O que fazer, por exemplo, se, numa emissora de
rádio, ao vivo, um entrevistado enunciar uma inverdade? A empresa terá de pagar
por isso? Há ainda perguntas sem respostas.
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo no
dia 2, a advogada Taís Gasparian, uma das mais respeitadas especialistas em
liberdade de imprensa no Brasil, chamou de “labiríntica” a tese abraçada pelo
STF neste caso. O adjetivo procede. A partir de agora, por sendas sinuosas,
traiçoeiras e um tanto imprevisíveis, virão por aí ações judiciais que,
independentemente do resultado, infernizarão especialmente os pequenos órgãos
de imprensa.
Por essas razões, ao dar alcance geral a um
julgamento que deveria se restringir a uma causa isolada e atípica, o STF abriu
uma porteira perigosa. Não se trata de censura, é verdade, mas essa medida
poderá provocar uma onda de medo e autocensura dentro das redações. A ver.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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