O Globo
Um dos maiores focos de críticas a Jair
Bolsonaro foi a instrumentalização do Ministério Público que ele
promoveu com Augusto
Aras. Em quatro anos de gestão, o ex-presidente teve no procurador-geral da
República uma blindagem poderosa contra acusações que poderiam lhe tirar o
mandato — da flagrante omissão na pandemia de Covid-19 às tentativas de sabotar
a credibilidade do sistema eleitoral.
Sem Aras, Bolsonaro não teria ido tão longe
em sua autoimposta missão de destruir nossas instituições. Mas é verdade que o
sistema político também não tem do que reclamar, uma vez que, sob Aras, muito
pouca gente com foro privilegiado foi incomodada com investigações, processos
ou eventuais acusações.
Com a desculpa de ser contra a
“criminalização da política”, Aras vilipendiou a função constitucional do MP de
proteger o interesse público.
Mas eis que, depois de meses de indefinição, finalmente tivemos a sabatina com seu substituto, o subprocurador-geral da República Paulo Gonet, escalado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Apadrinhado pelos ministros do Supremo
Tribunal Federal Gilmar
Mendes e Alexandre
de Moraes, Gonet foi amavelmente recebido por todas as correntes
ideológicas e conquistou aprovação acachapante no plenário — 65 votos dos 77
senadores presentes.
O resultado era esperado — tanto que a
própria sabatina foi feita com a de Flávio Dino,
para diminuir as oportunidades de ataques de bolsonaristas ao ministro da
Justiça de Lula.
Mas, enquanto Dino se saiu relativamente bem,
sem se furtar a responder a questões sobre quase tudo — evitando antecipar como
votará no Supremo, como fazem todos os candidatos, mas pelo menos dizendo
claramente o que pensava —, Gonet atravessou a sabatina da mesma forma que a
atriz Glória Pires na inesquecível transmissão da festa do Oscar.
O futuro PGR passou as dez horas de sabatina
dizendo não ter condições de opinar sobre quase nada. Foi especialmente
escorregadio quando perguntaram como agiria em relação ao inquérito das fake
news — aquele em que os ministros do Supremo são ao mesmo tempo vítimas,
investigadores e juízes —, uma vez que o tribunal desconsiderou todas as
manifestações do MP até agora.
“Não sei o que está acontecendo ali”, afirmou
Gonet, alegando que parte dos inquéritos está em segredo de Justiça. “Não me
caberia buscar conhecer esse inquérito antes de merecer a confiança de Vossas
Excelências e de ser nomeado”.
Ocorre que o PGR de Lula conhece o inquérito,
ou pelo menos parte dele, porque, quando atuava no Tribunal Superior Eleitoral
(TSE),
teve de analisar provas compartilhadas pelo Supremo numa ação que pedia a
cassação de Bolsonaro.
Lá em 2021, Gonet considerou que não havia
prova de que as empresas de marketing digital que fizeram a campanha de 2018
haviam sido pagas para fazer disparos de fake news via WhatsApp.
Na época do parecer, Bolsonaro estava no
poder, e Gonet já tinha até sido o candidato da deputada Bia Kicis (PL-DF)
para substituir Raquel Dodge na PGR — que já havia tentado arquivar o inquérito
das fake news, mas fora solenemente ignorada pelo relator, Alexandre de Moraes.
Por uma dessas ironias da política, quem
acabou indicando Gonet foi Lula, e um dos grandes padrinhos da nomeação é
justamente Moraes. Só essa circunstância, porém, pode não ser suficiente para
explicar a performance. O mais provável é que a certeza da aprovação também o
tenha levado a “fazer a Glória Pires” para não arriscar perder voto.
O futuro PGR só foi enfático ao defender seu
outro padrinho político e ex-sócio, o ministro do Supremo Gilmar Mendes. Quando
o senador Alessandro
Vieira (MDB-SE) se referiu a Gilmar como “alguém aparentemente carente
do mínimo pudor ético” que “não vê o menor constrangimento em juntar no mesmo
festim investigados, julgadores e partes interessadas em processos em curso na
Corte Superior”, Gonet se abalou:
“O ministro Gilmar Mendes é um nome honrado,
é um nome de pessoa dedicada ao bem e é uma pessoa que não merece especulações
totalmente desfundamentadas sobre seu modo de agir”.
No resto do tempo, o que se viu foi um show
de tergiversação sobre assuntos que exigirão de Gonet uma posição — não só o
inquérito das fake news, mas também a descriminalização das drogas ou o marco
temporal para as terras indígenas.
Por causa desse desempenho, senadores andavam
pelos corredores chamando Gonet de “vaselina” e “ensaboado”. Para quem sabe ler
nas entrelinhas, foi bem o contrário. Em que pese tudo o que escondeu, o futuro
PGR foi claríssimo sobre a quem hipoteca sua lealdade. Sobre isso não deve
haver surpresas. Talvez aí esteja o problema, não apenas para a oposição, mas
também para o governo.
2 comentários:
Pois é.
Veremos.
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