Angústia com segurança exige resposta ágil
O Globo
Pesquisa constatou que violência se tornou
maior preocupação do brasileiro, à frente da economia
Além de constatar queda na aprovação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a última pesquisa Quaest mostra que a violência é hoje o tema que mais preocupa os brasileiros. Mencionada por 26% dos entrevistados, ultrapassou a economia (21%). Os pesquisadores recomendam cautela ao associar qualquer preocupação específica à queda na popularidade de Lula — atribuída sobretudo ao fiasco do Pix —, mas seria ingênuo supor que a segurança pública tem pouca influência sobre a opinião a respeito do governo. O resultado é um recado aos governos federal e estaduais. A população está insatisfeita com as medidas adotadas até agora. Propostas de solução, como a PEC da Segurança, caminham lentamente e geralmente esbarram na falta de consenso entre as esferas de governo. Isso precisa mudar.
A mensagem das ruas equivale a um pedido de
urgência. Em dezembro de 2023, a violência ocupava a quarta posição no ranking
dos cinco principais problemas do país, à frente apenas de educação. Seis meses
depois, já ultrapassara corrupção, questões sociais e saúde, encostando na
economia. Nos últimos 30 dias, saltou 5 pontos percentuais. A reviravolta é um
retrato da vida real. Pela estimativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
23,5 milhões de brasileiros com idade acima de 16 anos vivem em áreas com forte
presença do crime organizado. E o resto da população vive com medo.
A atuação de organizações criminosas em todas
as regiões do país, muitas vezes com conexões no exterior, exige resposta
coordenada dos governos federal e estaduais. Não é razoável manter o atual
arranjo institucional. Nem todos os bancos de dados se comunicam. O statu quo
facilita a infiltração do crime na política, nas instituições e na economia.
Diante da inércia das autoridades, o crime prospera. A PEC da Segurança busca
corrigir alguns erros. Aumenta o protagonismo do governo federal e prevê mais
ações integradas. O texto precisa ser uma das prioridades dos novos presidentes
da Câmara dos Deputados e do Senado. Deve ser avaliado e votado sem demora.
As resistências no Congresso diminuíram
depois de o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, ter feito modificações
para atender a demandas de governadores. A nova versão torna explícita a
subordinação das polícias militares, civis, penais e dos bombeiros aos estados.
As acusações de interferência do governo federal eram descabidas, mas agora o
texto não deixa espaço para dúvida. A atuação prevista para a Polícia Viária
Federal, criada a partir da Polícia Rodoviária Federal, também foi revisada,
para não se sobrepor ao trabalho da Polícia Federal e da Polícia Civil.
A aprovação da PEC da Segurança seria um
avanço institucional. Não terá, porém, o condão de resolver todos os problemas.
As autoridades precisarão agir noutras frentes. Os governadores, tão ciosos do
comando das polícias locais, têm o dever de coibir a infiltração do crime entre
as instituições e forças da lei. O combate às facções deveria começar dentro
das próprias delegacias e batalhões. O governo federal precisa assumir o
protagonismo na necessária integração de bancos de dados, fundamental para a inteligência
de combate ao crime. Por fim, é preciso ação eficaz nos presídios, que servem
de sede e fonte de mão de obra para o crime organizado. É certo que não são
tarefas triviais, mas sem elas não haverá resposta à altura da angústia da
população comprovada pelos números.
Autoridade metropolitana é caminho para
transformar transportes no Rio
O Globo
É inadmissível que até hoje não haja
integração entre os meios estaduais e municipais em benefício do cidadão
Passageiros que usam transporte público na
Região Metropolitana do Rio vivem um sufoco diário. Insegurança, precariedade,
profusão de baldeações, imprevisibilidade de horários e tarifas altas desafiam
a paciência e o humor de qualquer um. Tudo se torna pior porque não há
integração efetiva entre ônibus municipais e intermunicipais, trens, metrô,
barcas, VLT e vans. Isso encarece as passagens, como mostra a série de
reportagens do GLOBO sobre o tema.
Trata-se de um sistema perverso, que
dificulta a vida dos moradores de cidades mais distantes da capital, obrigados
a pegar várias conduções. Não se trata apenas de maior desconforto e maior
custo. Morar longe das áreas onde estão os postos de trabalho representa
dificuldade adicional de conseguir emprego. Uma moradora de Nova Iguaçu, na
Baixada Fluminense, diz gastar R$ 32 por dia com as conduções. Para o
empregador, sai mais barato contratar quem mora mais perto. Não surpreende o
inchaço das favelas nas regiões centrais, onde há mais e melhores opções de
transporte.
A situação é mais complexa porque parte dos
transportes é administrada pelo estado e parte pelo município. O certo seria
integrar tudo, independentemente do poder concedente. Na prática, não é o que
ocorre. Apesar de políticas públicas como bilhete único, que dá desconto nas
tarifas, a integração ainda é falha. É nítido o contraste com capitais como São
Paulo, onde o sistema funciona há décadas. Recentemente, a Prefeitura do Rio
adiou a operação do bilhete que passará a ser o único aceito nos transportes municipais
(ônibus, BRTs, vans e VLT). Se entrasse em funcionamento imediatamente, o
passageiro teria de usar um bilhete nos transportes municipais e outro nos
estaduais, um absurdo. Estado e município precisam evitar esse retrocesso.
A questão, que envolve transportes municipais
e estaduais, não pode ser resolvida no âmbito das prefeituras. O razoável seria
criar uma autoridade metropolitana que pudesse se articular com os diferentes
municípios, como acontece noutras regiões metropolitanas do mundo, como Nova
York, Boston ou Londres. Mas é fundamental que ela seja autônoma, sem
dependência de governos, para poder defender os interesses do passageiro. “Os
poderes públicos têm de estar alinhados para integrar esse sistema, e não atuar
como concorrentes”, diz Márcio D’Agosto, doutor em engenharia de transportes
pela Coppe/UFRJ.
As linhas de ônibus intermunicipais e os
trens devem passar por licitação neste ano. É uma oportunidade para
aperfeiçoá-los. Mas não bastarão ajustes pontuais. Os transportes do Rio
necessitam de uma transformação geral. Salvo exceções, o serviço prestado é
ruim e caro. Não se pode admitir que, num estado como o Rio de Janeiro, ônibus
ainda circulem sem ar-condicionado, impondo aos passageiros viagens infernais.
Além de elevar a qualidade do transporte público, é urgente que se integrem as
tarifas de todos os sistemas. Está claro que o modelo atual, que pune a
população mais pobre, não funciona. É urgente mudá-lo.
Crise no IBGE traz risco para credibilidade
do governo
Valor Econômico
Se quiser evitar outro caso como o do Pix,
que resultou em grande queda de popularidade, o governo precisa ficar atento ao
que está ocorrendo no IBGE
O Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) está mergulhado em uma crise que pode se tornar uma nova dor
de cabeça do Palácio do Planalto. Importantes diretores do órgão, essencial
para a produção de dados que norteiam as políticas públicas, entregaram seus
cargos por desavenças com a gestão do atual presidente, Márcio Pochmann. Mais
do que a debandada no quadro funcional, o que está em jogo é a credibilidade do
instituto, já alvejada nas redes sociais, além da do próprio governo, que ainda
não despertou para a magnitude do problema e nada parece ter aprendido com o
recente episódio do Pix.
A contenda se arrasta desde setembro do ano
passado, quando servidores foram informados da criação do “IBGE+”. Lançada sem
debate prévio com o quadro técnico e com a sociedade civil, a fundação, de
caráter público-privado, permitirá ao IBGE receber recursos adicionais para
inovação tecnológica que não estariam sujeitos às amarras do orçamento federal.
A resistência ao novo órgão decorre da possibilidade da prestação de serviços
para entidades privadas. Por lançar sombra sobre a credibilidade histórica e a
missão do principal fornecedor de estatísticas do país, a estrutura foi
apelidada por críticos de “IBGE Paralelo”.
Foi o estopim que desvelou haver, por trás
das divergências em relação ao “IBGE+”, uma longa lista de atritos envolvendo a
gestão Pochmann, economista formado pela Unicamp e quadro histórico do PT,
imposto para o cargo pelo presidente Lula a contragosto da ministra do
Planejamento e Orçamento, Simone Tebet (MDB). Apenas em janeiro, quatro
diretores das principais áreas de pesquisa pediram demissão. Em carta aberta
inédita na história da instituição, 134 servidores, a maior parte deles
gerentes, questionaram a presidência do órgão e usaram adjetivos duros para
qualificá-la: autoritária, política e midiática.
A resposta do IBGE em nada contribuiu para
acalmar os ânimos, pelo contrário. Em comunicados, a gestão Pochmann nega ter
tomado decisões unilaterais em relação à criação do “IBGE+”. Acusou os
servidores de propagar mentiras sobre a instituição e acenou ir à Justiça. E,
no mais recente capítulo da disputa, informou ter aberto apuração interna sobre
uma suposta existência de “consultorias privadas de servidores instaladas
ilicitamente dentro do IBGE”, vinculando o início do processo ao surgimento da
campanha de críticas contra a atual administração.
Embora os contornos da crise sejam mais
graves do que um embate comum em um órgão público, o episódio seria só mais um
entre vários não fossem as redes sociais e a nova dinâmica política de campanha
contínua imposta por elas. Enquanto o Planalto permanece em silêncio e o
Ministério de Planejamento afirmar, em nota, que segue os desdobramentos, a
oposição trabalha para transformar o fogo cruzado em novo vetor de
desestabilização da popularidade do governo.
Aproveitando-se da preocupação expressa por
Lula com a inflação dos alimentos e das declarações atrapalhadas do ministro da
Casa Civil, Rui Costa, sobre como amenizar o problema, as redes sociais têm
sido palco nos últimos dias de uma campanha relacionando a crise do IBGE a uma
alegada (e não comprovada) maquiagem do Índice de Preços ao Consumidor Amplo
(IPCA), medido pelo instituto. As denúncias dos servidores e o vínculo de
Pochmann com o PT criam um ambiente fértil para que a desinformação ganhe corpo.
Não é a primeira vez, porém, que o IBGE é
alvo de ataques deste tipo. Dados relativos à redução da pobreza e do
desemprego também têm sido contestados pelos mesmos motivos desde o ano
passado. A ideia por trás deste movimento é provocar as águas para ver se delas
surge uma alguma tempestade.
Não há qualquer sinal de manipulação nos
dados publicados pelo IBGE. Em artigo publicado neste Valor (15/01) já em meio a
campanha para descredibilizar o IBGE, os economistas Ricardo Barboza e Bráulio
Borges compararam os índices calculados pelo órgão, por meio de consolidadas
metodologias, com os de outros respeitados institutos nacionais, encontrando semelhança
nos resultados, o que demonstra ser falsa a narrativa de intervenção. Mas os
mais recentes ataques devem acender um alerta. Com o desconhecimento da
população sobre como a inflação é mensurada e a percepção de pagar cada vez
mais a cada ida ao supermercado, a ideia de que os preços dos alimentos estão
descolados da realidade medida pelo IPCA pode vingar com facilidade.
Se quiser evitar outro caso como o do Pix,
que resultou em grande queda de popularidade, o governo precisa ficar atento ao
que está ocorrendo no IBGE, e já não há mais como ignorar o problema. Sabia-se
desde a indicação, dado o passado de polêmicas de Pochmann no comando do Ipea,
que sua gestão no IBGE poderia ser turbulenta, mas os alertas foram ignorados
por Lula. Diante dos temores gerados pela reação dos servidores à nova
fundação, dos riscos à credibilidade do instituto e do oportunismo da oposição
em explorar o tema, o governo não pode subestimar essa crise.
Recorde de receita não vem sem embaraços para
o governo
Folha de S. Paulo
Tesouro recebe maior valor real da história
em tributos, mas fecha no vermelho; alta dos gastos precisa ser contida
Fossem outras as circunstâncias, o recorde de
arrecadação tributária contabilizado em 2024 seria lido como uma vitória do
ministro Fernando
Haddad, da Fazenda, e sua equipe, que tiveram sucesso considerável no
esforço de buscar mais receitas. No atual contexto, porém, o resultado não vem
sem embaraços para o governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT).
Os números impressionam. Em valores
corrigidos pela inflação, a
União coletou R$ 2,709 trilhões em impostos, contribuições, taxas,
royalties e outras fontes, um salto de 9,6% —ou R$ 238 bilhões, suficientes
para pagar quase um ano e meio de Bolsa Família—
em relação ao ano anterior.
Maior da história em termos reais, a
arrecadação foi equivalente a 22,46% do Produto Interno Bruto estimado, patamar
que só havia sido atingido ou superado em alguns momentos da primeira década do
século, quando o país vivia um momento excepcional devido ao boom global de
preços de produtos primários.
Parcela importante da melhora pode ser
atribuída ao crescimento da economia, que
superou as expectativas iniciais e se aproximou dos 3,5%. Mas foram decisivas,
de fato, as providências destinadas a reduzir benefícios e elevar a tributação.
Por esse aspecto, o recorde é divulgado em
momento politicamente delicado para o governo Lula, ainda às voltas com a
péssima repercussão de uma medida para elevar
o controle de transações por meio do Pix —que suscitou a informação
falsa de que o instrumento seria taxado e a percepção plausível de que o
governo federal buscava elevar receitas com fiscalização.
Mais grave, a cifra excepcional escancara o
fracasso da estratégia petista de equilibrar o Orçamento exclusivamente com o
aumento de receitas, sem conter a alta contínua das despesas.
Afinal, nem a arrecadação histórica bastou
para cobrir os gastos com pessoal, custeio administrativo, programas sociais e
investimentos. O Tesouro Nacional deve apurar um déficit primário (excluindo
encargos com juros da
dívida) perto dos R$ 40 bilhões no ano passado.
Daqui para a frente, o cenário deve ser bem
mais difícil. Algumas das receitas de 2024 tiveram caráter extraordinário e
devem se reduzir; a busca de mais recursos será obstruída pela campanha da
oposição à direita contra a sanha arrecadatória de Lula; a disparada dos juros,
consequência da gastança, tende a limitar a expansão da economia.
Com a alta das taxas dos títulos públicos,
ademais, o governo federal precisará buscar superávits maiores para conter a
escalada de sua dívida.
É correta e justa a estratégia de rever
privilégios tributários para setores influentes —multiplicados, aliás, em
gestões petistas anteriores. É ilusório, porém, imaginar que elevar uma carga
já excessiva resolverá o grave desequilíbrio das contas do Tesouro. A
arrecadação precisa ser mais bem distribuída, não maior.
Antiglobalismo anticientífico
Folha de S. Paulo
Com patriotismo datado de Trump, EUA saem da
OMS, da qual são o maior doador; isolamento do país afeta população mundial
Em seu discurso na Assembleia Geral da ONU de
2018, Donald
Trump, então no seu primeiro mandato, disse que os Estados
Unidos vão sempre escolher a sua soberania em vez de um governo
global.
Essa ideologia antiglobalista, em voga na
direita populista, apoia-se num patriotismo anacrônico para condenar o comércio
e as instituições internacionais. E foi com base nela que o presidente
americano instituiu, na sua volta à Casa Branca, medidas que podem gerar
efeitos nefastos para a população mundial.
Trump assinou ordens executivas que retiram
os EUA do Acordo de Paris —tratado internacional sobre mudança
climática, de 2015— e da Organização Mundial da Saúde. Nesses
casos, verifica-se ainda o obscurantismo científico do atual chefe da nação
mais poderosa do planeta.
As medidas são temerárias. No caso da OMS, os EUA são o
maior doador do órgão que é referência em pesquisas médicas e projetos de
promoção da saúde. Na pandemia de Covid-19, teve papel crucial em articulação
de esforços e divulgação de informações.
Entre 2022 e 2023, os
americanos destinaram US$ 1,3 bilhão à OMS. O segundo maior doador é a
Alemanha (US$ 856 milhões), seguida pela Fundação Bill & Melinda Gates, do
fundador da Microsoft,
com US$ 830 milhões.
Cerca de 42% da verba oriunda dos EUA foi
para países da África, que
enfrentam altas taxas de contaminação do HIV e surtos de Mpox. Projetos para
erradicação da poliomielite,
que voltou a ser emergência global em 2014, receberam 14,8% do montante.
No ambiente doméstico, a medida de Trump visa
agradar a sua sua base de apoiadores, adepta do comportamento antivacina e de
teorias conspiratórias nacionalistas sobre ameaças de um suposto governo
global.
Outro setor afetado é o da imigração. A Casa
Branca cortou por 90 dias o repasse de recursos para entidades como a
Organização Internacional para as Migrações, ligada à ONU. A OIM atua no
suporte a refugiados,
como os da Venezuela,
em 14 estados do Brasil e já avisou o governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) que suspenderá
atividades por três meses.
Naquela Assembleia Geral da ONU de 2018,
Trump também disse que honra "o direito de cada nação de buscar seus
próprios costumes, crenças e tradições".
A questão é que políticas para a saúde, o
ambiente e a proteção dos direitos humanos devem ser regidas não só por traços
culturais e patriotismo, mas por evidências científicas e valores universais
que têm contribuído para o avanço civilizatório global.
A destruição criativa da IA chinesa
O Estado de S. Paulo
A competição pela IA parecia vencida por umas
poucas ‘big techs’ americanas. Mas uma startup chinesa mostrou que o jogo só
começou e está aberto a empresas de todo o mundo
No seu discurso de posse na semana passada, o
presidente americano, Donald Trump, anunciou uma “nova era eletrizante de
sucesso nacional”. Turbinado pela tecnologia mais disruptiva de nosso tempo,
talvez de todos os tempos, a inteligência artificial (IA), o sucesso do novo
império americano poderia ir tão longe até fincar sua bandeira em Marte. Um dos
primeiros compromissos de Trump foi anunciar planos para investimentos privados
de meio trilhão de dólares no “maior projeto de infraestrutura de IA na história”.
Faz todo sentido. Dois anos após a OpenAI
lançar o ChatGPT, o primeiro aplicativo de IA para o público em geral, o
consenso é de que o desenvolvimento exige uma quantidade brutal de energia e de
chips de última geração. Os investimentos em centros de dados pelas três
gigantes da computação em nuvem (Alphabet, Amazon e Microsoft) e a Meta
cresceram 57% em um ano, chegando a US$ 180 bilhões. A Microsoft, principal
investidora da OpenAI, anunciou US$ 80 bilhões em infraestrutura para este ano;
e a Meta, US$ 65 bilhões em IA. A tecnologia da IA parecia se concentrar em
umas poucas big techs americanas, e os custos formariam uma fortaleza
inexpugnável para os competidores.
Então, uma jovem, pequena e obscura startup
chinesa, a DeepSeek, jogou uma granada na sala: lançou um modelo de linguagem
de grande escala tão eficiente quanto o ChatGPT, mas produzido com uma
quantidade muito menor de chips de segunda categoria e, portanto, com custos
comparativamente ínfimos.
No fim de semana, o DeepSeek-R1 ultrapassou o
ChatGPT em downloads. Na segunda-feira, as empresas de tecnologia americanas
perderam US$ 1 trilhão no mercado de ações. As ações da campeã da produção de
chips, a Nvidia, que cresceram 10 vezes em dois anos, o que a tornou a empresa
mais valiosa do mundo, despencaram 17%, com perda de quase US$ 600 bilhões, a
maior de um único ativo na história. Entre as empresas de energia, também foi
um banho de sangue.
Rapidamente, investidores concluíram que
estamos no “momento Sputnik da IA”, numa referência ao lançamento do satélite
Sputnik pelos russos em 1957, evento que assustou os americanos, temerosos de
perder a decisiva corrida espacial em meio à guerra fria. Para alento dos EUA,
sabe-se que o “momento Sputnik” da URSS foi efêmero, pois os americanos, depois
de investirem muito dinheiro e criatividade, acabaram superando os soviéticos
nessa disputa e chegaram à Lua.
Mas a comparação tem limites. A DeepSeek não
só é brutalmente mais barata, mas seus códigos são abertos. Qualquer
empreendedor com uma quantidade moderada de dinheiro pode replicá-los e
redesenhá-los, o que deve multiplicar exponencialmente a oferta do serviço
mundo afora.
Além do choque no mercado, as implicações
geopolíticas são imensas. “O lançamento do DeepSeek deve ser um alerta para as
nossas indústrias de que precisamos estar focados em competir para vencer”,
disse Trump. “Isso é bom porque você não precisa gastar tanto dinheiro”,
arrematou, como se fosse um CEO empenhado em aumentar margens de lucro, e não
um presidente da República que deve pensar em estratégias de longo prazo.
No início dos anos 2000, a China se abriu ao
mercado global e o inundou com produtos baratos. Como reação, não poucos países
parecem ter entendido que esse desenvolvimento chinês se deu por causa do
“capitalismo de Estado”, e não a despeito dele. Até os EUA agora emulam esse
modelo, seja através de políticas industriais com impulso estatal, seja por
meio de protecionismo brutal. Mas, assim como o crescimento econômico chinês
das últimas décadas, o DeepSeek foi resultado do empreendedorismo. As tentativas
dos EUA de controlar exportações de tecnologia, ao invés de sufocar a inovação
chinesa, as estimularam. Os EUA e outros países precisam focar em competir, e
não em proteger.
O jogo da IA parecia definitivamente vencido
pelas big techs americanas. Mas a pequena DeepSeek não só mostrou que
esse jogo está apenas começando, como conseguiu mudar completamente as regras.
A corrida espacial foi disputada pelos governos de duas superpotências. A
corrida pela IA agora pode ser disputada por empresas de todo o mundo.
Uma boa discussão desperdiçada
O Estado de S. Paulo
Rever o regulamento dos prazos para consumo
de alimentos não teria nenhum efeito sobre a inflação. Mas poderia ser útil
para favorecer populações carentes e reduzir o desperdício de comida
Não durou mais que algumas horas a
possibilidade levantada pelo governo de revisar o regulamento dos prazos para
consumo de produtos alimentícios. É um exemplo de uma discussão pertinente
nascida pelos motivos errados e morta pelos motivos errados.
A proposta integra um pacote de medidas
sugerido em julho passado por associações da indústria de alimentos e
supermercados, e implica a adoção de um modelo de rotulagem similar ao de
países como EUA, Canadá e Reino Unido. Produtos estáveis em temperatura
ambiente, como biscoitos, macarrão, grãos ou enlatados, poderiam conter
indicações do tipo “ideal para consumo até a data X”. Isso porque esses
produtos tipicamente perdem certas qualidades após um certo período – por
exemplo, a crocância dos biscoitos –, mas o prazo para o consumo seguro pode se
estender muito além disso.
Ante a escalada da inflação dos alimentos, o
governo, mais perdido que cachorro em dia de mudança, se move por tentativa e
erro, e chegou a aventar essa proposta no conjunto de medidas estudadas para
baratear preços. Mas, traumatizado após a sova da oposição nas redes sociais
durante a “revolta do Pix”, logo a descartou.
Evidentemente, a ideia de oferecer “comida
vencida” ou “picanha podre para pobre” é um prato cheio para a oposição, e
pode-se imaginar o que os petistas fariam se estivessem em posição trocada. Na
verdade, nem é preciso imaginar. Durante a pandemia, o governo de Jair
Bolsonaro chegou a sugerir algo semelhante. Imediatamente as redes petistas
foram inundadas com acusações de “higienismo” e perversidade “antipobre”.
Assim como não cabe ingenuidade em relação às
estratégias marqueteiras de governo e oposição, tampouco cabe em relação aos
interesses do varejo. A medida, por si só, não levaria necessariamente a preços
menores para o consumidor. Seguramente ela não teria nenhum efeito sobre a
inflação. Mas, acompanhada de outras, poderia ter alguma utilidade para atender
populações carentes e, sobretudo, para minimizar o desperdício de alimentos.
A ONU estima que algo como 800 milhões de
pessoas (10% da população mundial) sofra com subnutrição crônica, ao mesmo
tempo que cerca de um terço de todos os alimentos produzidos no mundo é perdido
ou desperdiçado – o suficiente para alimentar 1 bilhão de pessoas. Não há uma
causa ou um culpado, mas muitos. Descontadas as perdas durante a produção, a
ONU estima que 13% da comida seja desperdiçada no varejo; 26%, nos serviços de
alimentação; e 61%, nas casas.
Reduzir as perdas e desperdícios implicaria
ganhos como aumento da produtividade e crescimento econômico, mais segurança
alimentar e nutrição e mitigação de impactos climáticos. Calcula-se que o
desperdício de alimentos seja responsável por 8% a 10% das emissões globais de
carbono, pelo menos o dobro das emissões da aviação.
Nesse contexto, diversos países vêm
promovendo iniciativas para prevenir o desperdício ou reaproveitar alimentos.
Há startups que facilitam a compra a preços mais baixos de produtos rejeitados
pelos supermercados como defeituosos – às vezes por razões puramente estéticas,
mas aptos ao consumo. Há aplicativos que oferecem descontos em comida de
restaurantes prestes a ser jogada fora. Na França e na Califórnia, foram
promulgadas leis que obrigam supermercados e restaurantes a doar alimentos
consumíveis que seriam descartados.
Um sistema de informações nas embalagens
diferenciando entre o prazo para um consumo de qualidade e o prazo para o
consumo seguro poderia embasar medidas desse tipo, seja no varejo, para
oferecer produtos a menores preços ou para doação, seja nas casas, para evitar
o descarte de alimentos aptos ao consumo. As associações de produção e varejo
estimam que isso poderia gerar uma economia de R$ 3 bilhões ao ano em comida
desperdiçada.
O problema da perda de alimentos é complexo e
as soluções exigem a coordenação de múltiplos atores, desde o governo, passando
por produtores, vendedores e consumidores, até a infraestrutura de compostagem
e reciclagem. Por isso mesmo, é lamentável desperdiçar, no brejo das picuinhas
políticas, uma discussão que poderia contribuir para reduzir o desperdício.
Os sofás de Nunes
O Estado de S. Paulo
Prefeito diz que a cidade está preparada para
chuvas e culpa moradores que jogam lixo no lugar errado
A forte chuva da sexta-feira passada em São
Paulo alagou ruas, arrastou carros, inundou uma estação de metrô, levou
transtorno à população e causou ao menos uma morte. O prefeito Ricardo Nunes,
contudo, considera que a cidade está “muito preparada” para enfrentar situações
como aquela. Segundo o alcaide, a “resiliência foi evidente”.
Para Nunes, portanto, a Prefeitura fez sua
parte. O problema, segundo ele, é que a população paulistana não fez a parte
dela. Anteontem, o prefeito criticou moradores pelo descarte de lixo em áreas
indevidas. Em suas palavras, “se você joga um sofá, um colchão dentro do rio,
aí não tem prefeitura que aguente”.
É fato que a chuva que castigou São Paulo na
semana passada foi excepcional – entre 15h e 16h de sexta, caíram 82 milímetros
de água, enquanto a média esperada para todo o mês é de 238 mm. É fato também
que a cidade poderia ter sofrido ainda mais, não fossem algumas obras da
Prefeitura. E é fato, igualmente, que muitos moradores não colaboram com a
limpeza da cidade, entupindo galerias com lixo.
Nada disso, contudo, autoriza o prefeito
Ricardo Nunes nem a considerar que a cidade esteja “muito preparada” para esses
eventos climáticos de grandes proporções, nem a concluir que a Prefeitura fez
tudo o que podia em seu trabalho de prevenção, nem muito menos a transferir
para os moradores da cidade uma responsabilidade que é inteiramente do poder
público.
Que a cidade não está “muito preparada” para
chuvas severas, as imagens de desespero falam por si. Que a Prefeitura não fez
tudo o que podia para melhorar a prevenção, fica claro quando se toma
conhecimento de que foi somente em dezembro que a administração municipal
concluiu, com atraso de dez anos, o Plano Municipal de Redução de Riscos. E o
prefeito Nunes só o fez impelido por uma ordem da Justiça, após o Ministério
Público cobrar o plano previsto no Plano Diretor.
Por fim, mas não menos relevante, não se
espera que um prefeito responsabilize os munícipes pelos problemas que ele foi
eleito para resolver. Se os paulistanos estão jogando lixo em locais indevidos,
cabe à Prefeitura punir os infratores, além de ser ágil na remoção desse
entulho e de promover campanhas de esclarecimento para o correto descarte. É
assim que trabalham os governantes que não fogem das responsabilidades.
E tudo o que São Paulo mais precisa neste
momento é de administradores que assumam suas responsabilidades. A perspectiva
em relação aos efeitos das grandes chuvas é preocupante. Segundo o Plano
Municipal de Redução de Riscos, o número de áreas de risco para alagamentos,
deslizamentos e solapamento cresceu, e 4,3% da população vive nelas.
Ademais, a tendência é de aumento da incidência de chuvas hoje ainda consideradas “excepcionais”. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) alertou que o número de chuvas acima de 80 milímetros na Grande São Paulo tem crescido, passando de 3, entre 1960 e 1970, para 16, de 2010 a 2020. Para enfrentar esse cenário, será preciso muito mais do que tirar sofás de bueiros.
É urgente estimular a doação pediátrica
Correio Braziliense
O Brasil, dono de um dos maiores sistemas
públicos de transplantes do mundo, tem por obrigação ampliar o número de
crianças assistidas
Conduzindo um trabalhoso processo para
reverter a queda nos transplantes de órgãos em razão da pandemia da
covid-19 — a quantidade de cirurgias e doações caiu drasticamente durante a
crise sanitária —, o Distrito Federal enfrenta um dilema ainda maior
quando quem está à espera de um procedimento que pode salvar a própria
vida é uma criança. Como mostra reportagem do Correio Braziliense desta
terça-feira, a resistência à doação de órgãos pediátricos é grande na capital
do país, resultando em uma dramática batalha pela sobrevivência travada pelos
pequenos pacientes, seus familiares e os profissionais de saúde.
Levantamento obtido pelo Correio mostra que,
no ano passado, houve no Distrito Federal 10 vezes mais cirurgias de
transplante para adultos do que para crianças. Enquanto foram feitos 32
transplantes do coração em pacientes com mais de 18 anos, apenas três menores
de idade receberam o órgão vital no mesmo período. Coordenadora clínica de
Transplante Cardíaco Pediátrico do Instituto de Cardiologia e Transplantes do
DF (ICTDF), a médica Cristina Camargo Afiune relata que, em 2024, houve
"pouquíssimos doadores pediátricos" no DF e Entorno, principalmente
devido à "recusa dos familiares em fazer a doação".
Associações médicas, governos e instituições
de sociais têm se mobilizado em campanhas que estimulem a doação de órgãos por
todo o país — a campanha Setembro Verde, por exemplo, completou a
primeira década no ano passado. Mas parece haver uma inabilidade dessas
entidades em focar nas ações que possam beneficiar o público infantil. Há,
obviamente, uma tendência natural entre os adultos de proteger os seus pequenos
— esse é, inclusive, um dos principais campos de atuação do movimento que nega
a eficácia das vacinas —, mas é por meio de uma educação eficaz em saúde que se
vence esses obstáculos e se constrói gerações conscientes do valor da saúde
coletiva. É árduo o trabalho, mas o Brasil tem expertise. Basta revisitar a
simbólica história do Zé Gotinha.
A falta de compreensão sobre o diagnóstico de
morte encefálica e a desconfiança com relação à assistência prestada à criança
sem vida também dificultam o processo de doação de órgãos. São pontos
nevrálgicos nas unidades de saúde do DF e do resto do país a comunicação da
morte dos pacientes e o acolhimento de seus familiares, independentemente da
idade que tenham. Corrigi-los passa, entre outros desafios, por sensibilizar
categorias profissionais treinadas para impedir a ocorrência da morte a
qualquer custo e para não se render à finitude humana.
A emoção, aliás, foi o caminho encontrado por Allana Saldanha, 25 anos, para enfrentar a cardiopatia congênita que ameaça a vida de Samuel, com 11 meses. Ela relata em uma rede social a história do filho, que precisa de um novo coração, na tentativa de conscientizar a população sobre a importância da doação de órgãos."Infelizmente, é na dor que a gente salva vidas", desabafou a jovem mãe ao Correio. O Brasil, dono de um dos maiores sistemas públicos de transplantes do mundo, tem por obrigação ampliar o número de crianças assistidas e mobilizar mais adultos para essa luta em defesa da vida dos que são o futuro do país.
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