quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

O que pensa a mídia / Editoriais / Opiniões

Angústia com segurança exige resposta ágil

O Globo

Pesquisa constatou que violência se tornou maior preocupação do brasileiro, à frente da economia

Além de constatar queda na aprovação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a última pesquisa Quaest mostra que a violência é hoje o tema que mais preocupa os brasileiros. Mencionada por 26% dos entrevistados, ultrapassou a economia (21%). Os pesquisadores recomendam cautela ao associar qualquer preocupação específica à queda na popularidade de Lula — atribuída sobretudo ao fiasco do Pix —, mas seria ingênuo supor que a segurança pública tem pouca influência sobre a opinião a respeito do governo. O resultado é um recado aos governos federal e estaduais. A população está insatisfeita com as medidas adotadas até agora. Propostas de solução, como a PEC da Segurança, caminham lentamente e geralmente esbarram na falta de consenso entre as esferas de governo. Isso precisa mudar.

A mensagem das ruas equivale a um pedido de urgência. Em dezembro de 2023, a violência ocupava a quarta posição no ranking dos cinco principais problemas do país, à frente apenas de educação. Seis meses depois, já ultrapassara corrupção, questões sociais e saúde, encostando na economia. Nos últimos 30 dias, saltou 5 pontos percentuais. A reviravolta é um retrato da vida real. Pela estimativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 23,5 milhões de brasileiros com idade acima de 16 anos vivem em áreas com forte presença do crime organizado. E o resto da população vive com medo.

A atuação de organizações criminosas em todas as regiões do país, muitas vezes com conexões no exterior, exige resposta coordenada dos governos federal e estaduais. Não é razoável manter o atual arranjo institucional. Nem todos os bancos de dados se comunicam. O statu quo facilita a infiltração do crime na política, nas instituições e na economia. Diante da inércia das autoridades, o crime prospera. A PEC da Segurança busca corrigir alguns erros. Aumenta o protagonismo do governo federal e prevê mais ações integradas. O texto precisa ser uma das prioridades dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado. Deve ser avaliado e votado sem demora.

As resistências no Congresso diminuíram depois de o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, ter feito modificações para atender a demandas de governadores. A nova versão torna explícita a subordinação das polícias militares, civis, penais e dos bombeiros aos estados. As acusações de interferência do governo federal eram descabidas, mas agora o texto não deixa espaço para dúvida. A atuação prevista para a Polícia Viária Federal, criada a partir da Polícia Rodoviária Federal, também foi revisada, para não se sobrepor ao trabalho da Polícia Federal e da Polícia Civil.

A aprovação da PEC da Segurança seria um avanço institucional. Não terá, porém, o condão de resolver todos os problemas. As autoridades precisarão agir noutras frentes. Os governadores, tão ciosos do comando das polícias locais, têm o dever de coibir a infiltração do crime entre as instituições e forças da lei. O combate às facções deveria começar dentro das próprias delegacias e batalhões. O governo federal precisa assumir o protagonismo na necessária integração de bancos de dados, fundamental para a inteligência de combate ao crime. Por fim, é preciso ação eficaz nos presídios, que servem de sede e fonte de mão de obra para o crime organizado. É certo que não são tarefas triviais, mas sem elas não haverá resposta à altura da angústia da população comprovada pelos números.

Autoridade metropolitana é caminho para transformar transportes no Rio

O Globo

É inadmissível que até hoje não haja integração entre os meios estaduais e municipais em benefício do cidadão

Passageiros que usam transporte público na Região Metropolitana do Rio vivem um sufoco diário. Insegurança, precariedade, profusão de baldeações, imprevisibilidade de horários e tarifas altas desafiam a paciência e o humor de qualquer um. Tudo se torna pior porque não há integração efetiva entre ônibus municipais e intermunicipais, trens, metrô, barcas, VLT e vans. Isso encarece as passagens, como mostra a série de reportagens do GLOBO sobre o tema.

Trata-se de um sistema perverso, que dificulta a vida dos moradores de cidades mais distantes da capital, obrigados a pegar várias conduções. Não se trata apenas de maior desconforto e maior custo. Morar longe das áreas onde estão os postos de trabalho representa dificuldade adicional de conseguir emprego. Uma moradora de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, diz gastar R$ 32 por dia com as conduções. Para o empregador, sai mais barato contratar quem mora mais perto. Não surpreende o inchaço das favelas nas regiões centrais, onde há mais e melhores opções de transporte.

A situação é mais complexa porque parte dos transportes é administrada pelo estado e parte pelo município. O certo seria integrar tudo, independentemente do poder concedente. Na prática, não é o que ocorre. Apesar de políticas públicas como bilhete único, que dá desconto nas tarifas, a integração ainda é falha. É nítido o contraste com capitais como São Paulo, onde o sistema funciona há décadas. Recentemente, a Prefeitura do Rio adiou a operação do bilhete que passará a ser o único aceito nos transportes municipais (ônibus, BRTs, vans e VLT). Se entrasse em funcionamento imediatamente, o passageiro teria de usar um bilhete nos transportes municipais e outro nos estaduais, um absurdo. Estado e município precisam evitar esse retrocesso.

A questão, que envolve transportes municipais e estaduais, não pode ser resolvida no âmbito das prefeituras. O razoável seria criar uma autoridade metropolitana que pudesse se articular com os diferentes municípios, como acontece noutras regiões metropolitanas do mundo, como Nova York, Boston ou Londres. Mas é fundamental que ela seja autônoma, sem dependência de governos, para poder defender os interesses do passageiro. “Os poderes públicos têm de estar alinhados para integrar esse sistema, e não atuar como concorrentes”, diz Márcio D’Agosto, doutor em engenharia de transportes pela Coppe/UFRJ.

As linhas de ônibus intermunicipais e os trens devem passar por licitação neste ano. É uma oportunidade para aperfeiçoá-los. Mas não bastarão ajustes pontuais. Os transportes do Rio necessitam de uma transformação geral. Salvo exceções, o serviço prestado é ruim e caro. Não se pode admitir que, num estado como o Rio de Janeiro, ônibus ainda circulem sem ar-condicionado, impondo aos passageiros viagens infernais. Além de elevar a qualidade do transporte público, é urgente que se integrem as tarifas de todos os sistemas. Está claro que o modelo atual, que pune a população mais pobre, não funciona. É urgente mudá-lo.

Crise no IBGE traz risco para credibilidade do governo

Valor Econômico

Se quiser evitar outro caso como o do Pix, que resultou em grande queda de popularidade, o governo precisa ficar atento ao que está ocorrendo no IBGE

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) está mergulhado em uma crise que pode se tornar uma nova dor de cabeça do Palácio do Planalto. Importantes diretores do órgão, essencial para a produção de dados que norteiam as políticas públicas, entregaram seus cargos por desavenças com a gestão do atual presidente, Márcio Pochmann. Mais do que a debandada no quadro funcional, o que está em jogo é a credibilidade do instituto, já alvejada nas redes sociais, além da do próprio governo, que ainda não despertou para a magnitude do problema e nada parece ter aprendido com o recente episódio do Pix.

A contenda se arrasta desde setembro do ano passado, quando servidores foram informados da criação do “IBGE+”. Lançada sem debate prévio com o quadro técnico e com a sociedade civil, a fundação, de caráter público-privado, permitirá ao IBGE receber recursos adicionais para inovação tecnológica que não estariam sujeitos às amarras do orçamento federal. A resistência ao novo órgão decorre da possibilidade da prestação de serviços para entidades privadas. Por lançar sombra sobre a credibilidade histórica e a missão do principal fornecedor de estatísticas do país, a estrutura foi apelidada por críticos de “IBGE Paralelo”.

Foi o estopim que desvelou haver, por trás das divergências em relação ao “IBGE+”, uma longa lista de atritos envolvendo a gestão Pochmann, economista formado pela Unicamp e quadro histórico do PT, imposto para o cargo pelo presidente Lula a contragosto da ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet (MDB). Apenas em janeiro, quatro diretores das principais áreas de pesquisa pediram demissão. Em carta aberta inédita na história da instituição, 134 servidores, a maior parte deles gerentes, questionaram a presidência do órgão e usaram adjetivos duros para qualificá-la: autoritária, política e midiática.

A resposta do IBGE em nada contribuiu para acalmar os ânimos, pelo contrário. Em comunicados, a gestão Pochmann nega ter tomado decisões unilaterais em relação à criação do “IBGE+”. Acusou os servidores de propagar mentiras sobre a instituição e acenou ir à Justiça. E, no mais recente capítulo da disputa, informou ter aberto apuração interna sobre uma suposta existência de “consultorias privadas de servidores instaladas ilicitamente dentro do IBGE”, vinculando o início do processo ao surgimento da campanha de críticas contra a atual administração.

Embora os contornos da crise sejam mais graves do que um embate comum em um órgão público, o episódio seria só mais um entre vários não fossem as redes sociais e a nova dinâmica política de campanha contínua imposta por elas. Enquanto o Planalto permanece em silêncio e o Ministério de Planejamento afirmar, em nota, que segue os desdobramentos, a oposição trabalha para transformar o fogo cruzado em novo vetor de desestabilização da popularidade do governo.

Aproveitando-se da preocupação expressa por Lula com a inflação dos alimentos e das declarações atrapalhadas do ministro da Casa Civil, Rui Costa, sobre como amenizar o problema, as redes sociais têm sido palco nos últimos dias de uma campanha relacionando a crise do IBGE a uma alegada (e não comprovada) maquiagem do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medido pelo instituto. As denúncias dos servidores e o vínculo de Pochmann com o PT criam um ambiente fértil para que a desinformação ganhe corpo.

Não é a primeira vez, porém, que o IBGE é alvo de ataques deste tipo. Dados relativos à redução da pobreza e do desemprego também têm sido contestados pelos mesmos motivos desde o ano passado. A ideia por trás deste movimento é provocar as águas para ver se delas surge uma alguma tempestade.

Não há qualquer sinal de manipulação nos dados publicados pelo IBGE. Em artigo publicado neste Valor (15/01) já em meio a campanha para descredibilizar o IBGE, os economistas Ricardo Barboza e Bráulio Borges compararam os índices calculados pelo órgão, por meio de consolidadas metodologias, com os de outros respeitados institutos nacionais, encontrando semelhança nos resultados, o que demonstra ser falsa a narrativa de intervenção. Mas os mais recentes ataques devem acender um alerta. Com o desconhecimento da população sobre como a inflação é mensurada e a percepção de pagar cada vez mais a cada ida ao supermercado, a ideia de que os preços dos alimentos estão descolados da realidade medida pelo IPCA pode vingar com facilidade.

Se quiser evitar outro caso como o do Pix, que resultou em grande queda de popularidade, o governo precisa ficar atento ao que está ocorrendo no IBGE, e já não há mais como ignorar o problema. Sabia-se desde a indicação, dado o passado de polêmicas de Pochmann no comando do Ipea, que sua gestão no IBGE poderia ser turbulenta, mas os alertas foram ignorados por Lula. Diante dos temores gerados pela reação dos servidores à nova fundação, dos riscos à credibilidade do instituto e do oportunismo da oposição em explorar o tema, o governo não pode subestimar essa crise.

Recorde de receita não vem sem embaraços para o governo

Folha de S. Paulo

Tesouro recebe maior valor real da história em tributos, mas fecha no vermelho; alta dos gastos precisa ser contida

Fossem outras as circunstâncias, o recorde de arrecadação tributária contabilizado em 2024 seria lido como uma vitória do ministro Fernando Haddad, da Fazenda, e sua equipe, que tiveram sucesso considerável no esforço de buscar mais receitas. No atual contexto, porém, o resultado não vem sem embaraços para o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Os números impressionam. Em valores corrigidos pela inflação, a União coletou R$ 2,709 trilhões em impostos, contribuições, taxas, royalties e outras fontes, um salto de 9,6% —ou R$ 238 bilhões, suficientes para pagar quase um ano e meio de Bolsa Família— em relação ao ano anterior.

Maior da história em termos reais, a arrecadação foi equivalente a 22,46% do Produto Interno Bruto estimado, patamar que só havia sido atingido ou superado em alguns momentos da primeira década do século, quando o país vivia um momento excepcional devido ao boom global de preços de produtos primários.

Parcela importante da melhora pode ser atribuída ao crescimento da economia, que superou as expectativas iniciais e se aproximou dos 3,5%. Mas foram decisivas, de fato, as providências destinadas a reduzir benefícios e elevar a tributação.

Por esse aspecto, o recorde é divulgado em momento politicamente delicado para o governo Lula, ainda às voltas com a péssima repercussão de uma medida para elevar o controle de transações por meio do Pix —que suscitou a informação falsa de que o instrumento seria taxado e a percepção plausível de que o governo federal buscava elevar receitas com fiscalização.

Mais grave, a cifra excepcional escancara o fracasso da estratégia petista de equilibrar o Orçamento exclusivamente com o aumento de receitas, sem conter a alta contínua das despesas.

Afinal, nem a arrecadação histórica bastou para cobrir os gastos com pessoal, custeio administrativo, programas sociais e investimentos. O Tesouro Nacional deve apurar um déficit primário (excluindo encargos com juros da dívida) perto dos R$ 40 bilhões no ano passado.

Daqui para a frente, o cenário deve ser bem mais difícil. Algumas das receitas de 2024 tiveram caráter extraordinário e devem se reduzir; a busca de mais recursos será obstruída pela campanha da oposição à direita contra a sanha arrecadatória de Lula; a disparada dos juros, consequência da gastança, tende a limitar a expansão da economia.

Com a alta das taxas dos títulos públicos, ademais, o governo federal precisará buscar superávits maiores para conter a escalada de sua dívida.

É correta e justa a estratégia de rever privilégios tributários para setores influentes —multiplicados, aliás, em gestões petistas anteriores. É ilusório, porém, imaginar que elevar uma carga já excessiva resolverá o grave desequilíbrio das contas do Tesouro. A arrecadação precisa ser mais bem distribuída, não maior.

Antiglobalismo anticientífico

Folha de S. Paulo

Com patriotismo datado de Trump, EUA saem da OMS, da qual são o maior doador; isolamento do país afeta população mundial

Em seu discurso na Assembleia Geral da ONU de 2018, Donald Trump, então no seu primeiro mandato, disse que os Estados Unidos vão sempre escolher a sua soberania em vez de um governo global.

Essa ideologia antiglobalista, em voga na direita populista, apoia-se num patriotismo anacrônico para condenar o comércio e as instituições internacionais. E foi com base nela que o presidente americano instituiu, na sua volta à Casa Branca, medidas que podem gerar efeitos nefastos para a população mundial.

Trump assinou ordens executivas que retiram os EUA do Acordo de Paris —tratado internacional sobre mudança climática, de 2015— e da Organização Mundial da Saúde. Nesses casos, verifica-se ainda o obscurantismo científico do atual chefe da nação mais poderosa do planeta.

As medidas são temerárias. No caso da OMS, os EUA são o maior doador do órgão que é referência em pesquisas médicas e projetos de promoção da saúde. Na pandemia de Covid-19, teve papel crucial em articulação de esforços e divulgação de informações.

Entre 2022 e 2023, os americanos destinaram US$ 1,3 bilhão à OMS. O segundo maior doador é a Alemanha (US$ 856 milhões), seguida pela Fundação Bill & Melinda Gates, do fundador da Microsoft, com US$ 830 milhões.

Cerca de 42% da verba oriunda dos EUA foi para países da África, que enfrentam altas taxas de contaminação do HIV e surtos de Mpox. Projetos para erradicação da poliomielite, que voltou a ser emergência global em 2014, receberam 14,8% do montante.

No ambiente doméstico, a medida de Trump visa agradar a sua sua base de apoiadores, adepta do comportamento antivacina e de teorias conspiratórias nacionalistas sobre ameaças de um suposto governo global.

Outro setor afetado é o da imigração. A Casa Branca cortou por 90 dias o repasse de recursos para entidades como a Organização Internacional para as Migrações, ligada à ONU. A OIM atua no suporte a refugiados, como os da Venezuela, em 14 estados do Brasil e já avisou o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que suspenderá atividades por três meses.

Naquela Assembleia Geral da ONU de 2018, Trump também disse que honra "o direito de cada nação de buscar seus próprios costumes, crenças e tradições".

A questão é que políticas para a saúde, o ambiente e a proteção dos direitos humanos devem ser regidas não só por traços culturais e patriotismo, mas por evidências científicas e valores universais que têm contribuído para o avanço civilizatório global.

A destruição criativa da IA chinesa

O Estado de S. Paulo

A competição pela IA parecia vencida por umas poucas ‘big techs’ americanas. Mas uma startup chinesa mostrou que o jogo só começou e está aberto a empresas de todo o mundo

No seu discurso de posse na semana passada, o presidente americano, Donald Trump, anunciou uma “nova era eletrizante de sucesso nacional”. Turbinado pela tecnologia mais disruptiva de nosso tempo, talvez de todos os tempos, a inteligência artificial (IA), o sucesso do novo império americano poderia ir tão longe até fincar sua bandeira em Marte. Um dos primeiros compromissos de Trump foi anunciar planos para investimentos privados de meio trilhão de dólares no “maior projeto de infraestrutura de IA na história”.

Faz todo sentido. Dois anos após a OpenAI lançar o ChatGPT, o primeiro aplicativo de IA para o público em geral, o consenso é de que o desenvolvimento exige uma quantidade brutal de energia e de chips de última geração. Os investimentos em centros de dados pelas três gigantes da computação em nuvem (Alphabet, Amazon e Microsoft) e a Meta cresceram 57% em um ano, chegando a US$ 180 bilhões. A Microsoft, principal investidora da OpenAI, anunciou US$ 80 bilhões em infraestrutura para este ano; e a Meta, US$ 65 bilhões em IA. A tecnologia da IA parecia se concentrar em umas poucas big techs americanas, e os custos formariam uma fortaleza inexpugnável para os competidores.

Então, uma jovem, pequena e obscura startup chinesa, a DeepSeek, jogou uma granada na sala: lançou um modelo de linguagem de grande escala tão eficiente quanto o ChatGPT, mas produzido com uma quantidade muito menor de chips de segunda categoria e, portanto, com custos comparativamente ínfimos.

No fim de semana, o DeepSeek-R1 ultrapassou o ChatGPT em downloads. Na segunda-feira, as empresas de tecnologia americanas perderam US$ 1 trilhão no mercado de ações. As ações da campeã da produção de chips, a Nvidia, que cresceram 10 vezes em dois anos, o que a tornou a empresa mais valiosa do mundo, despencaram 17%, com perda de quase US$ 600 bilhões, a maior de um único ativo na história. Entre as empresas de energia, também foi um banho de sangue.

Rapidamente, investidores concluíram que estamos no “momento Sputnik da IA”, numa referência ao lançamento do satélite Sputnik pelos russos em 1957, evento que assustou os americanos, temerosos de perder a decisiva corrida espacial em meio à guerra fria. Para alento dos EUA, sabe-se que o “momento Sputnik” da URSS foi efêmero, pois os americanos, depois de investirem muito dinheiro e criatividade, acabaram superando os soviéticos nessa disputa e chegaram à Lua.

Mas a comparação tem limites. A DeepSeek não só é brutalmente mais barata, mas seus códigos são abertos. Qualquer empreendedor com uma quantidade moderada de dinheiro pode replicá-los e redesenhá-los, o que deve multiplicar exponencialmente a oferta do serviço mundo afora.

Além do choque no mercado, as implicações geopolíticas são imensas. “O lançamento do DeepSeek deve ser um alerta para as nossas indústrias de que precisamos estar focados em competir para vencer”, disse Trump. “Isso é bom porque você não precisa gastar tanto dinheiro”, arrematou, como se fosse um CEO empenhado em aumentar margens de lucro, e não um presidente da República que deve pensar em estratégias de longo prazo.

No início dos anos 2000, a China se abriu ao mercado global e o inundou com produtos baratos. Como reação, não poucos países parecem ter entendido que esse desenvolvimento chinês se deu por causa do “capitalismo de Estado”, e não a despeito dele. Até os EUA agora emulam esse modelo, seja através de políticas industriais com impulso estatal, seja por meio de protecionismo brutal. Mas, assim como o crescimento econômico chinês das últimas décadas, o DeepSeek foi resultado do empreendedorismo. As tentativas dos EUA de controlar exportações de tecnologia, ao invés de sufocar a inovação chinesa, as estimularam. Os EUA e outros países precisam focar em competir, e não em proteger.

O jogo da IA parecia definitivamente vencido pelas big techs americanas. Mas a pequena DeepSeek não só mostrou que esse jogo está apenas começando, como conseguiu mudar completamente as regras. A corrida espacial foi disputada pelos governos de duas superpotências. A corrida pela IA agora pode ser disputada por empresas de todo o mundo.

Uma boa discussão desperdiçada

O Estado de S. Paulo

Rever o regulamento dos prazos para consumo de alimentos não teria nenhum efeito sobre a inflação. Mas poderia ser útil para favorecer populações carentes e reduzir o desperdício de comida

Não durou mais que algumas horas a possibilidade levantada pelo governo de revisar o regulamento dos prazos para consumo de produtos alimentícios. É um exemplo de uma discussão pertinente nascida pelos motivos errados e morta pelos motivos errados.

A proposta integra um pacote de medidas sugerido em julho passado por associações da indústria de alimentos e supermercados, e implica a adoção de um modelo de rotulagem similar ao de países como EUA, Canadá e Reino Unido. Produtos estáveis em temperatura ambiente, como biscoitos, macarrão, grãos ou enlatados, poderiam conter indicações do tipo “ideal para consumo até a data X”. Isso porque esses produtos tipicamente perdem certas qualidades após um certo período – por exemplo, a crocância dos biscoitos –, mas o prazo para o consumo seguro pode se estender muito além disso.

Ante a escalada da inflação dos alimentos, o governo, mais perdido que cachorro em dia de mudança, se move por tentativa e erro, e chegou a aventar essa proposta no conjunto de medidas estudadas para baratear preços. Mas, traumatizado após a sova da oposição nas redes sociais durante a “revolta do Pix”, logo a descartou.

Evidentemente, a ideia de oferecer “comida vencida” ou “picanha podre para pobre” é um prato cheio para a oposição, e pode-se imaginar o que os petistas fariam se estivessem em posição trocada. Na verdade, nem é preciso imaginar. Durante a pandemia, o governo de Jair Bolsonaro chegou a sugerir algo semelhante. Imediatamente as redes petistas foram inundadas com acusações de “higienismo” e perversidade “antipobre”.

Assim como não cabe ingenuidade em relação às estratégias marqueteiras de governo e oposição, tampouco cabe em relação aos interesses do varejo. A medida, por si só, não levaria necessariamente a preços menores para o consumidor. Seguramente ela não teria nenhum efeito sobre a inflação. Mas, acompanhada de outras, poderia ter alguma utilidade para atender populações carentes e, sobretudo, para minimizar o desperdício de alimentos.

A ONU estima que algo como 800 milhões de pessoas (10% da população mundial) sofra com subnutrição crônica, ao mesmo tempo que cerca de um terço de todos os alimentos produzidos no mundo é perdido ou desperdiçado – o suficiente para alimentar 1 bilhão de pessoas. Não há uma causa ou um culpado, mas muitos. Descontadas as perdas durante a produção, a ONU estima que 13% da comida seja desperdiçada no varejo; 26%, nos serviços de alimentação; e 61%, nas casas.

Reduzir as perdas e desperdícios implicaria ganhos como aumento da produtividade e crescimento econômico, mais segurança alimentar e nutrição e mitigação de impactos climáticos. Calcula-se que o desperdício de alimentos seja responsável por 8% a 10% das emissões globais de carbono, pelo menos o dobro das emissões da aviação.

Nesse contexto, diversos países vêm promovendo iniciativas para prevenir o desperdício ou reaproveitar alimentos. Há startups que facilitam a compra a preços mais baixos de produtos rejeitados pelos supermercados como defeituosos – às vezes por razões puramente estéticas, mas aptos ao consumo. Há aplicativos que oferecem descontos em comida de restaurantes prestes a ser jogada fora. Na França e na Califórnia, foram promulgadas leis que obrigam supermercados e restaurantes a doar alimentos consumíveis que seriam descartados.

Um sistema de informações nas embalagens diferenciando entre o prazo para um consumo de qualidade e o prazo para o consumo seguro poderia embasar medidas desse tipo, seja no varejo, para oferecer produtos a menores preços ou para doação, seja nas casas, para evitar o descarte de alimentos aptos ao consumo. As associações de produção e varejo estimam que isso poderia gerar uma economia de R$ 3 bilhões ao ano em comida desperdiçada.

O problema da perda de alimentos é complexo e as soluções exigem a coordenação de múltiplos atores, desde o governo, passando por produtores, vendedores e consumidores, até a infraestrutura de compostagem e reciclagem. Por isso mesmo, é lamentável desperdiçar, no brejo das picuinhas políticas, uma discussão que poderia contribuir para reduzir o desperdício.

Os sofás de Nunes

O Estado de S. Paulo

Prefeito diz que a cidade está preparada para chuvas e culpa moradores que jogam lixo no lugar errado

A forte chuva da sexta-feira passada em São Paulo alagou ruas, arrastou carros, inundou uma estação de metrô, levou transtorno à população e causou ao menos uma morte. O prefeito Ricardo Nunes, contudo, considera que a cidade está “muito preparada” para enfrentar situações como aquela. Segundo o alcaide, a “resiliência foi evidente”.

Para Nunes, portanto, a Prefeitura fez sua parte. O problema, segundo ele, é que a população paulistana não fez a parte dela. Anteontem, o prefeito criticou moradores pelo descarte de lixo em áreas indevidas. Em suas palavras, “se você joga um sofá, um colchão dentro do rio, aí não tem prefeitura que aguente”.

É fato que a chuva que castigou São Paulo na semana passada foi excepcional – entre 15h e 16h de sexta, caíram 82 milímetros de água, enquanto a média esperada para todo o mês é de 238 mm. É fato também que a cidade poderia ter sofrido ainda mais, não fossem algumas obras da Prefeitura. E é fato, igualmente, que muitos moradores não colaboram com a limpeza da cidade, entupindo galerias com lixo.

Nada disso, contudo, autoriza o prefeito Ricardo Nunes nem a considerar que a cidade esteja “muito preparada” para esses eventos climáticos de grandes proporções, nem a concluir que a Prefeitura fez tudo o que podia em seu trabalho de prevenção, nem muito menos a transferir para os moradores da cidade uma responsabilidade que é inteiramente do poder público.

Que a cidade não está “muito preparada” para chuvas severas, as imagens de desespero falam por si. Que a Prefeitura não fez tudo o que podia para melhorar a prevenção, fica claro quando se toma conhecimento de que foi somente em dezembro que a administração municipal concluiu, com atraso de dez anos, o Plano Municipal de Redução de Riscos. E o prefeito Nunes só o fez impelido por uma ordem da Justiça, após o Ministério Público cobrar o plano previsto no Plano Diretor.

Por fim, mas não menos relevante, não se espera que um prefeito responsabilize os munícipes pelos problemas que ele foi eleito para resolver. Se os paulistanos estão jogando lixo em locais indevidos, cabe à Prefeitura punir os infratores, além de ser ágil na remoção desse entulho e de promover campanhas de esclarecimento para o correto descarte. É assim que trabalham os governantes que não fogem das responsabilidades.

E tudo o que São Paulo mais precisa neste momento é de administradores que assumam suas responsabilidades. A perspectiva em relação aos efeitos das grandes chuvas é preocupante. Segundo o Plano Municipal de Redução de Riscos, o número de áreas de risco para alagamentos, deslizamentos e solapamento cresceu, e 4,3% da população vive nelas.

Ademais, a tendência é de aumento da incidência de chuvas hoje ainda consideradas “excepcionais”. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) alertou que o número de chuvas acima de 80 milímetros na Grande São Paulo tem crescido, passando de 3, entre 1960 e 1970, para 16, de 2010 a 2020. Para enfrentar esse cenário, será preciso muito mais do que tirar sofás de bueiros.

É urgente estimular a doação pediátrica

Correio Braziliense

O Brasil, dono de um dos maiores sistemas públicos de transplantes do mundo, tem por obrigação ampliar o número de crianças assistidas

Conduzindo um trabalhoso processo para reverter a queda nos  transplantes de órgãos em razão da pandemia da covid-19 — a quantidade de cirurgias e doações caiu drasticamente durante a crise sanitária —, o Distrito Federal enfrenta um dilema ainda maior quando  quem está à espera de um procedimento que pode salvar a própria vida é uma criança. Como mostra reportagem do Correio Braziliense desta terça-feira, a resistência à doação de órgãos pediátricos é grande na capital do país, resultando em uma dramática batalha pela sobrevivência travada pelos pequenos pacientes, seus familiares e os profissionais de saúde. 

Levantamento obtido pelo Correio mostra que, no ano passado, houve no Distrito Federal 10 vezes mais cirurgias de transplante para adultos do que para crianças. Enquanto foram feitos 32 transplantes do coração em pacientes com mais de 18 anos, apenas três menores de idade receberam o órgão vital no mesmo período. Coordenadora clínica de Transplante Cardíaco Pediátrico do Instituto de Cardiologia e Transplantes do DF (ICTDF), a médica Cristina Camargo Afiune relata que, em 2024, houve "pouquíssimos doadores pediátricos" no DF e Entorno, principalmente devido à "recusa dos familiares em fazer a doação".  

Associações médicas, governos e instituições de sociais têm se mobilizado em campanhas que estimulem a doação de órgãos por todo o  país — a campanha Setembro Verde, por exemplo, completou a primeira década no ano passado. Mas parece haver uma inabilidade dessas entidades em focar nas ações que possam beneficiar o público infantil. Há, obviamente, uma tendência natural entre os adultos de proteger os seus pequenos — esse é, inclusive, um dos principais campos de atuação do movimento que nega a eficácia das vacinas —, mas é por meio de uma educação eficaz em saúde que se vence esses obstáculos e se constrói gerações conscientes do valor da saúde coletiva. É árduo o trabalho, mas o Brasil tem expertise. Basta revisitar a simbólica história do Zé Gotinha. 

A falta de compreensão sobre o diagnóstico de morte encefálica e a desconfiança com relação à assistência prestada à criança sem vida também dificultam o processo de doação de órgãos. São pontos nevrálgicos nas unidades de saúde do DF e do resto do país a comunicação da morte dos pacientes e o acolhimento de seus familiares, independentemente da idade que tenham. Corrigi-los passa, entre outros desafios, por sensibilizar categorias profissionais treinadas para impedir a ocorrência da morte a qualquer custo e para não se render à finitude humana.

A emoção, aliás, foi o caminho encontrado por Allana Saldanha, 25 anos, para enfrentar a cardiopatia congênita que ameaça a vida de Samuel, com 11 meses. Ela relata em uma rede social a história do filho, que precisa de um novo coração, na tentativa de conscientizar a população sobre a importância da doação de órgãos."Infelizmente, é na dor que a gente salva vidas", desabafou a jovem mãe ao Correio. O Brasil, dono de um dos maiores sistemas públicos de transplantes do mundo, tem por obrigação ampliar o número de crianças assistidas e mobilizar mais adultos para essa luta em defesa da vida dos que são o futuro do país.

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