CartaCapital
Sob pressão dos bolsonaristas pela anistia,
Hugo Motta desfila sobre o muro com desenvoltura e cálculo político
Hugo Motta, de 35 anos, não é só o mais jovem presidente da história da Câmara dos Deputados. É também um equilibrista naquela cadeira. Ou melhor, desde um pouco antes de sentar nela. Elegeu-se apoiado pelo PT de Lula e o PL de Bolsonaro, proeza explicada por expectativas e por emendas parlamentares, um fantasma para Motta e o pai prefeito na Paraíba. Tem se dado bem com o presidente da República, mas frequenta a Avenida Faria Lima, reduto antipetista, e declara aos quatro ventos que a Casa Legislativa vai alterar as duas principais propostas do governo no ano. Senta-se com o ex-presidente, mas segura a votação de anistia a golpistas, uma lei inaceitável pelo Supremo Tribunal Federal. Ao mesmo tempo, reclama que o Judiciário se mete em tudo. Incomoda-se, nos bastidores, com a sombra de Arthur Lira, seu antecessor, mas entregou-lhe o destino de uma das prioridades do governo. Liderou a cassação de Chiquinho Brazão, acusado de mandar matar Marielle Franco, mas com benesse embutida.
“O ano aqui na Câmara só vai começar depois de 1o de maio, aí é que vamos ver o que será o Motta como presidente. Ainda não votamos nada importante”, diz um deputado do Nordeste. “O povo brasileiro quer resultado. Quer emprego, quer melhorar de vida, quer educação melhor para seus filhos, quer mais segurança, quer viver melhor. Quer um futuro melhor, um Brasil melhor”, havia dito o paraibano em fevereiro, na posse como presidente da Câmara. Em 21 de abril, Dia de Tiradentes, foi a Minas Gerais e comentou ser preciso “gastarmos energia com aquilo que realmente vem a representar para o País avanços em muitos problemas que nós temos na saúde, na educação e na segurança pública”. Anistia a golpistas não merece essa energia. “Em um cenário de crise internacional, não podemos ter uma crise institucional”, anotou em um evento em 23 de abril. Por “crise institucional” leia-se “com o Supremo”.
Motta está sob pressão da extrema-direita por
causa da anistia. Uma das razões para o PL tê-lo apoiado na eleição foi a
esperança na lei. Para interlocutores do deputado, quem esperava por anistia
interpretou errado palavras ou silêncios de Motta. Três dias após assumir a
Câmara, havia animado Bolsonaro ao declarar numa entrevista: “Vamos tratar esse
tema de maneira muito tranquila, de maneira muito serena, para que não seja
mais um fator para aumentar o tensionamento que existe hoje entre os Poderes”. Para
o capitão, era um sinal de que “em havendo a maioria (a favor da votação),
entrará na pauta e em votação”. Em 14 de abril, o PL conseguiu as assinaturas
necessárias de deputados para pedir que a anistia fosse logo ao plenário. Na
semana anterior, Bolsonaro foi a Brasília falar com o deputado. Motta já tinha
em mãos um documento, da lavra da oposição, com alegadas violações de direitos
dos presos pelo 8 de Janeiro de 2023. Tudo em vão. Em 24 de abril, colocou o
tema “anistia” na mesa diante dos líderes partidários. E estes decidiram: nada
de votação.
Segundo um dos líderes, Motta fez uma conta. Ganharia mais na trincheira da anistia ou na oposta? Caso a abraçasse, teria gratidão do PL, a maior bancada, e o Novo, um nanico. Caso a rejeitasse, agradaria ao governo e ao STF. Para fazer a conta Motta teria tido, digamos, uma mão do presidente do Senado, Davi Alcolumbre. As residências oficiais de ambos ficam lado a lado, separadas por um muro, no qual há uma porta. Lira havia mandado fechar a passagem, no embalo de atritos com Rodrigo Pacheco, antecessor de Alcolumbre. Motta reabriu-a.
Para um deputado petista, não é só para
evitar confronto com o Supremo que Motta foge da anistia. Perdoar o capitão
significaria devolvê-lo ao jogo eleitoral, a julgar pelo texto preparado pelo
relator da lei, Rodrigo Valadares, do União Brasil de Sergipe. Seria o fim de
qualquer pretensão de Tarcísio de Freitas, governador paulista, concorrer a
presidente pelo direitismo. Freitas e Motta pertencem ao Republicanos. Sigla de
centro-direita, Motta fez questão de dizer em 29 de abril, no anúncio do
casamento de duas legendas que classificou de forma igual, PP e União Brasil.
Se Freitas concorrer a presidente, “a centro-direita não lança nenhum
candidato”, segundo Gilberto Kassab, homem forte do governador. Declarações
mais apropriadas para definir aquela ficção tida por “Centrão”. “A votação da
anistia vai expor uma traição: ou ao Bolsonaro ou ao Tarcísio”, teoriza um
deputado petista.
Teorias à parte, Motta recebeu em sua
residência oficial, em 23 de abril, Lula e líderes governistas para um jantar.
Tem mantido até aqui boa relação com o presidente. Foi ao Palácio do Planalto
logo após triunfar na Câmara, foi (a convite) com Lula à Ásia, para uma viagem
de uma semana, em março, e embarcou com ele (de novo a convite) em abril, para
ir ao velório do papa Francisco na Itália. Um dos operadores do Planalto no
Congresso acredita que Motta já teria percebido que Lula é favorito à reeleição.
Segundo relatos, no jantar o
presidente disse que é candidato e só a própria saúde o fará mudar de ideia. A
propósito, um marqueteiro colaborador de Motta, Chico Mendez, acha que “Lula
fez um governo para o PT, ignorou o centro e os liberais que o apoiaram em
2022”.
Motta confiou ao antecessor Arthur Lira a
relatoria do projeto de isenção de IR para quem ganha até 5 mil reais
No jantar, o petista falou quase o mesmo que
Motta no Dia de Tiradentes. Importa discutir saúde, educação, emprego, não
anistia. As prioridades do governo no Congresso são a isenção de Imposto de
Renda para quem ganha até 5 mil reais e a mudança na Constituição que amplia o
papel e os poderes federais na segurança pública. Para tocar a isenção, Motta
criou uma comissão especial e designou Lira, do PP de Alagoas, para cuidar da
lei. Já a PEC da Segurança está aos cuidados de um deputado que não é fã de Lula,
Mendonça Filho, do União Brasil de Pernambuco. Escolha do chefe da Comissão de
Constituição e Justiça, o baiano Paulo Azi, da sigla do pernambucano.
Indisposto a mexer com “anistia”, Motta é
alvo da extrema-direita nas redes sociais. E não vai ceder às pressões, anota
um interlocutor. Em 27 de abril, o vereador paulistano Rubinho Nunes, do União
Brasil, botou no Instagram um vídeo intitulado O Dossiê Hugo Motta. Fala de
rolos criminais da família do deputado na Paraíba, chama-o de “mentiroso” e de
“marionete do sistema”. Segundo ele, ao buscar apoio para ser presidente da
Câmara, Motta teria prometido à oposição colocar a anistia em votação. O deputado
teria recuado, prossegue Nunes, por pressão do Supremo. Outra razão seria de
ordem policial. Um enredo que se passa na Paraíba.
No sertão paraibano, está a terceira maior
cidade do estado, Patos, de 103 mil habitantes. O clã de Motta tem larga
tradição política por lá. O avô paterno do deputado, Nabor Wanderley, foi
prefeito nos anos 1950. O pai, Nabor Wanderley Filho, é o atual mandatário,
está no cargo pela quarta vez. Estivera à frente do município de 2005 a 2012 e
voltou a fazê-lo em 2021. Ao deixar o posto em 2013, elegeu Francisca Motta, a
avó materna de Hugo. Ilanna Motta, a mãe do deputado, foi chefe de gabinete da
prefeitura e secretária de Saúde na gestão da mãe. Francisca, de 84 anos, é
deputada estadual e, caso não dispute novo mandato, em razão da idade, a
família quer que a cadeira continue em casa: ou com Ilanna ou com a irmã de
Hugo, Olívia. Nabor Filho é nome cotado para concorrer a uma das duas vagas ao
Senado em 2026. Isso, claro, caso não seja atingido pela Polícia Federal em um
rolo que tem na origem uma emenda parlamentar de Hugo Motta.
Em 2020, o deputado separou no “orçamento
secreto” 3,9 milhões para obras de restauração de duas avenidas em Patos. A
verba foi reservada no Ministério do Desenvolvimento Regional. Em dezembro de
2020, a pasta firmou um convênio com o município para repassá-la. Nabor Filho,
pai do deputado, assumiria a prefeitura no mês seguinte. As obras seriam
executadas na gestão dele. A Controladoria-Geral da União identificou indícios
de fraude na licitação que escolheu a empresa das obras e de superfaturamento.
Graças a aditivos contratuais, as obras já estão em 6 milhões de reais.
Diante das descobertas da CGU, a PF entrou em
campo, na Operação Outside. Foi às ruas atrás de pistas e provas em setembro
de 2024 e em 3 de abril deste ano. A empreiteira vencedora da licitação
chama-se Engeplan. Seu dono é André Luís de Souza Cesarino. A esposa dele,
Dayane, foi alvo da PF em abril, juntamente com uma servidora da prefeitura,
Eulanda Ferreira da Silva. Esta era chefe da área de convênios na gestão Nabor
Filho. A PF encontrou pistas, em mensagens de telefone, de que ela recebeu
suborno da Engeplan. E desconfia que Eulanda agia em nome do clã de Hugo Motta,
que seria o elo da família com Cesarino.
Uma manobra de Motta preservou os direitos
políticos de Chiquinho Brazão, acusado de mandar matar Marielle Franco
O prefeito é citado na papelada que levou o
juiz Thiago Batista de Ataíde, da 14.a Vara Federal da Paraíba, a autorizar a
batida de abril da PF. Na decisão do magistrado, há referência a uma troca de
mensagens de Eulanda e Cesarino, de outubro de 2021. A servidora pergunta:
“Como ficou o resultado da concorrência?” Resposta: “Ganhamos”. Eulanda diz que
havia falado com o prefeito e que este comentara que a licitação havia saído
15% mais barata. Em outra conversa de Eulanda e Cesarino, de agosto de 2022,
surge o nome de um assessor de Hugo Motta em Brasília, Paulo Vinícius Marques
Pinheiro. A servidora conta ter passado um recado a “Paulinho”. A PF teria
achado algo comprometedor para Nabor Filho e Hugo Motta na batida de abril?
O deputado não comenta o caso de Patos.
Entende que não tem de fazê-lo, pois não é investigado. Ele assumiu a Câmara em
meio a uma cruzada do juiz Flávio Dino, do Supremo, para moralizar as emendas.
Líderes partidários pressionaram o paraibano para que ele peitasse a Corte.
Motta chegou a comentar a portas fechadas que os deputados não deveriam mais
depor à PF sobre o tema e que falaria com a Advocacia-Geral da Câmara sobre
alguma medida. Consta ter desistido da ideia após conversar com o chefe da PF,
Andrei Rodrigues. A reportagem questionou Motta sobre o tema através de sua
assessoria de imprensa. Não houve resposta.
Em 29 de abril, o líder do PL na Câmara,
Sóstenes Cavalcante, do Rio de Janeiro, recebeu uma intimação de Dino para
explicar declarações ao Globo sobre emendas. Irritado com Motta por causa da
anistia, Cavalcante afirmou que o PL romperia um acordo sobre emendas. Esse
acordo é sobre o rateio das “emendas de comissão”, alvos de inquérito policial
aberto em dezembro por ordem de Dino. Ao jornal, o líder do PL declarou ainda
que sua bancada cogita até uma greve de fome para dobrar Motta. Estratégia que
deu certo, em parte, com Glauber Braga, do PSOL do Rio.
O psolista foi cassado pelo Conselho de Ética
em 9 de abril. Motta tinha ajudado na degola. Havia retardado o início da
sessão plenária até a consumação da votação no colegiado. À frente da Câmara, o
paraibano tem sido pontual na abertura das sessões. Sempre às 16 horas. Em 9
de abril, ela começou às 19 horas. Em conversas reservadas, Motta dizia nada
poder fazer por Braga, o qual seria encrenqueiro. Aponta ainda mais um motivo:
Lira. “Ele me botou na cadeira”, comentou numa conversa. Seu antecessor quer defenestrar
o psolista, por quem é acusado de mau uso de verbas de emendas parlamentares.
Braga até deu dicas à PF sobre como “pegar” Lira na cidade alagoana de Rio
Largo.
O psolista entrou em greve de fome no dia da
cassação dele no conselho. Levou-a até 17 de abril, véspera da Sexta-Feira
Santa. Naquele dia, Motta falou com o líder do PT, Lindbergh Farias, do Rio. O
petista queria ajudar Braga. Motta é muito religioso, obteve o diploma de
Medicina em uma faculdade católica de Brasília. Mostrou a Farias que não estava
nada confortável com um deputado em greve de fome na Câmara às vésperas da
Páscoa. E topou deixar o caso Glauber Braga na gaveta por 60 dias depois de uma
decisão da Comissão de Constituição de Justiça sobre um recurso do deputado
contra a cassação. A CCJ negou o recurso em 29 de abril.
Motta acenou ao PSOL com a cassação plenária
de Chiquinho Brazão, acusado de mandar matar a vereadora Marielle Franco.
Seria uma compensação ao partido. Que, claro, não aceitou. Em 24 de abril, a
mesa diretora da Câmara, que é comandada por Motta, declarou a perda de mandato
de Brazão. Boa notícia? Essa degola tem um benefício disfarçado. Brazão foi
cassado por excesso de faltas, hipótese prevista na Constituição. Ficou preso
preventivamente por ordem do STF, onde é réu, de março de 2024 a 12 de abril,
quando foi para um cárcere domiciliar. Havia sido cassado pelo Conselho de
Ética por quebra de decoro. Seu processo nunca foi levado ao plenário: nem por
Lira, em 2024, nem por Motta, em 2025.
Sem ser cassado por quebra de decoro, Brazão
preserva os direitos políticos. Ou seja, pode concorrer na eleição 2026. “Com
muita pressão política e mobilização popular, consegui dois meses para lutar,
se não era execução sumária. Se eu passar a faltar às sessões, vou ser
destituído pela mesa diretora sem perder os direitos políticos?”, indaga Braga.
Com a palavra, o equilibrista.
Publicado na edição n° 1360 de CartaCapital,
em 07 de maio de 2025.
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