Valor Econômico
Dirce de Assis Cavalcanti não teve que inventar nada, simplesmente relatou sua história. Passou a vida decifrando indícios de si mesma para saber quem era
Faleceu em março a escritora Dirce de Assis
Cavalcanti, uma pessoa extraordinária que já nasceu, ela mesma, como triste
obra literária, como tragédia. Não teve que inventar nada, simplesmente relatar
sua história, a de um ser humano indicial que passou a vida decifrando indícios
de si mesma para saber quem era.
Os pais pouco conversavam entre si. Pai
militar e ausente, designado pelo Exército para diferentes unidades, em
distintos e distantes lugares do país, nem sempre deslocava a mulher e a filha
para morarem consigo.
Dirce teve, em boa parte do tempo, uma vida de relacionamento epistolar com o pai. Quando escrevia para ele, a mãe lhe recomendava: diga tal coisa a seu pai, diga isto, diga aquilo. E ele, em suas cartas, dizia-lhe: diga para sua mãe tal coisa ou tal outra coisa. Eles aparentemente não existiam um para o outro. Fizeram da filha, que tinha dificuldade para compreender essa modalidade de relacionamento, sua porta-voz.
Assim correu a vida entre eles.
Houve época em que a avó materna de Dirce
veio viver com eles. Era uma mulher idosa, doente e amargurada. O que complicou
a vida da neta: não podia correr, nem falar alto nem cantar. Sempre que se
aproximava da avó, ela fechava os olhos para fazer de conta que não a via.
Ficou-lhe a impressão de que, “talvez, não quisesse mesmo me ver, para não
tomar conhecimento da minha existência”.
Dirce de Assis foi socializada pela solidão e
pelo mistério, um caso sociologicamente anômalo, uma situação extrema de
anomia. Mesmo quando em casa e com os pais, se deu conta de que eram três
desencontrados. Refugiava-se no quarto, só seu, dias inteiros a falar com as
bonecas, “a família inanimada que me ouvia sempre atenta”.
Claro que a menina teve momentos de
convivência e de intenso afeto com o pai, um pai amoroso e atento, em cujo colo
gostava de dormir. De quem ela sentia falta, especialmente quando interna num
colégio católico no Rio.
Os pais brigavam muito. Havia entre eles
muito ciúme. A mãe era uma mãe triste e depressiva, que chorava muito. Mais
ainda nos dias de festa. Ela narra uma ceia de Natal em que a mãe aprontou tudo
com perfeição e esmero, deixou a família e foi para o quarto chorar. A família,
em várias ocasiões, morou em hotéis no Rio, o que no fundo aumentava uma
anômala sociabilidade de estranhos e de estranhamentos.
Na verdade, a mãe de Dirce era solteira.
Estabeleceu um relacionamento com Dilermando, que era casado com a viúva de
Euclides da Cunha. O relacionamento não sancionado socialmente aparentemente
era a causa dos estranhamentos na família de Marieta, mãe de Dirce, filha de
uma gravidez não desejada.
Num dos internatos em que estudou, num
desentendimento com as colegas, uma delas gritou: “Ela não presta, igual ao pai
dela. O pai dela já matou um homem”. Ela não conhecia a história de seu pai.
Ele fora amigo de Euclides da Cunha. No longo período de quase um ano em que
Euclides, a serviço do Itamaraty, estivera fazendo a demarcação da fronteira na
Amazônia, Anna, sua esposa, engravidara de Dilermando.
A coisa se complicou quando este a levou com
os filhos, seus e de Euclides, para sua própria casa. Euclides da Cunha
armou-se e foi aonde estavam a mulher e os filhos. É pouco provável que
Euclides não soubesse que seria morto. Dilermando era reconhecidamente o melhor
atirador do Exército brasileiro. Dirce conta que costumava fechar buracos de
goteiras com o chumbo de um tiro certeiro.
Na casa, houve tiroteio. Dilermando levou
vários tiros e o mesmo aconteceu com seu irmão Dinorah, que, ferido, ficou
paralítico. Era aspirante da Marinha. Acabou se matando.
Com o alerta da colega, Dirce ficou chocada.
De educação católica rígida, distanciou-se do pai, ensimesmou-se. Não sabia
quem seu pai havia matado. Até que, um dia, o pai foi levar Marieta ao médico e
Dirce descobriu que ele esquecera as chaves do escritório sobre a cama.
Pegou-as e abriu a secretária, vasculhou pastas e topou com recortes de jornais
que traziam o retrato do pai e a legenda: “Assassino!”.
Em diferentes ocasiões, Dirce foi peitada
mesmo na escola por pessoas que a acusavam de ser filha do homem que havia
matado o maior escritor brasileiro, “um deus, um deus literário”.
Dilermando acabou sendo reformado no
Exército, deixando a família e indo para São Paulo, onde arrumou um emprego de
diretor do Instituto Geográfico e Geológico. Em um período de férias, Dirce foi
ter com ele. Numa tarde ele a levou ao cemitério católico do Santíssimo
Sacramento, na avenida Dr. Arnaldo, onde estavam enterrados os pais italianos
de Dilermando e, também, seu irmão Dinorah. Disse que, quando morresse, queria
ser enterrado ali. E foi, como general.
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