sexta-feira, 2 de maio de 2025

‘O Pai’, uma tragédia brasileira - José de Souza Martins

Valor Econômico

Dirce de Assis Cavalcanti não teve que inventar nada, simplesmente relatou sua história. Passou a vida decifrando indícios de si mesma para saber quem era

Faleceu em março a escritora Dirce de Assis Cavalcanti, uma pessoa extraordinária que já nasceu, ela mesma, como triste obra literária, como tragédia. Não teve que inventar nada, simplesmente relatar sua história, a de um ser humano indicial que passou a vida decifrando indícios de si mesma para saber quem era.

Os pais pouco conversavam entre si. Pai militar e ausente, designado pelo Exército para diferentes unidades, em distintos e distantes lugares do país, nem sempre deslocava a mulher e a filha para morarem consigo.

Dirce teve, em boa parte do tempo, uma vida de relacionamento epistolar com o pai. Quando escrevia para ele, a mãe lhe recomendava: diga tal coisa a seu pai, diga isto, diga aquilo. E ele, em suas cartas, dizia-lhe: diga para sua mãe tal coisa ou tal outra coisa. Eles aparentemente não existiam um para o outro. Fizeram da filha, que tinha dificuldade para compreender essa modalidade de relacionamento, sua porta-voz.

Assim correu a vida entre eles.

Houve época em que a avó materna de Dirce veio viver com eles. Era uma mulher idosa, doente e amargurada. O que complicou a vida da neta: não podia correr, nem falar alto nem cantar. Sempre que se aproximava da avó, ela fechava os olhos para fazer de conta que não a via. Ficou-lhe a impressão de que, “talvez, não quisesse mesmo me ver, para não tomar conhecimento da minha existência”.

Dirce de Assis foi socializada pela solidão e pelo mistério, um caso sociologicamente anômalo, uma situação extrema de anomia. Mesmo quando em casa e com os pais, se deu conta de que eram três desencontrados. Refugiava-se no quarto, só seu, dias inteiros a falar com as bonecas, “a família inanimada que me ouvia sempre atenta”.

Claro que a menina teve momentos de convivência e de intenso afeto com o pai, um pai amoroso e atento, em cujo colo gostava de dormir. De quem ela sentia falta, especialmente quando interna num colégio católico no Rio.

Os pais brigavam muito. Havia entre eles muito ciúme. A mãe era uma mãe triste e depressiva, que chorava muito. Mais ainda nos dias de festa. Ela narra uma ceia de Natal em que a mãe aprontou tudo com perfeição e esmero, deixou a família e foi para o quarto chorar. A família, em várias ocasiões, morou em hotéis no Rio, o que no fundo aumentava uma anômala sociabilidade de estranhos e de estranhamentos.

Na verdade, a mãe de Dirce era solteira. Estabeleceu um relacionamento com Dilermando, que era casado com a viúva de Euclides da Cunha. O relacionamento não sancionado socialmente aparentemente era a causa dos estranhamentos na família de Marieta, mãe de Dirce, filha de uma gravidez não desejada.

Num dos internatos em que estudou, num desentendimento com as colegas, uma delas gritou: “Ela não presta, igual ao pai dela. O pai dela já matou um homem”. Ela não conhecia a história de seu pai. Ele fora amigo de Euclides da Cunha. No longo período de quase um ano em que Euclides, a serviço do Itamaraty, estivera fazendo a demarcação da fronteira na Amazônia, Anna, sua esposa, engravidara de Dilermando.

A coisa se complicou quando este a levou com os filhos, seus e de Euclides, para sua própria casa. Euclides da Cunha armou-se e foi aonde estavam a mulher e os filhos. É pouco provável que Euclides não soubesse que seria morto. Dilermando era reconhecidamente o melhor atirador do Exército brasileiro. Dirce conta que costumava fechar buracos de goteiras com o chumbo de um tiro certeiro.

Na casa, houve tiroteio. Dilermando levou vários tiros e o mesmo aconteceu com seu irmão Dinorah, que, ferido, ficou paralítico. Era aspirante da Marinha. Acabou se matando.

Com o alerta da colega, Dirce ficou chocada. De educação católica rígida, distanciou-se do pai, ensimesmou-se. Não sabia quem seu pai havia matado. Até que, um dia, o pai foi levar Marieta ao médico e Dirce descobriu que ele esquecera as chaves do escritório sobre a cama. Pegou-as e abriu a secretária, vasculhou pastas e topou com recortes de jornais que traziam o retrato do pai e a legenda: “Assassino!”.

Em diferentes ocasiões, Dirce foi peitada mesmo na escola por pessoas que a acusavam de ser filha do homem que havia matado o maior escritor brasileiro, “um deus, um deus literário”.

Dilermando acabou sendo reformado no Exército, deixando a família e indo para São Paulo, onde arrumou um emprego de diretor do Instituto Geográfico e Geológico. Em um período de férias, Dirce foi ter com ele. Numa tarde ele a levou ao cemitério católico do Santíssimo Sacramento, na avenida Dr. Arnaldo, onde estavam enterrados os pais italianos de Dilermando e, também, seu irmão Dinorah. Disse que, quando morresse, queria ser enterrado ali. E foi, como general.

 

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